Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.
Aos cinco anos, o desporto de Rochele era o ballet. Mas não lhe chegava.
Por isso, aos oito, quando o irmão – e exemplo – experimentou o judo por causa das Tartarugas Ninja e do Dragon Ball, Rochele foi atrás.
E o judo também não lhe chegava. Razão pela qual chegou a conciliá-lo com futebol, natação ou andebol.
O importante era ter atividades para lá da escola. Isso era algo obrigatório para os filhos da dona Rosangela e do senhor Ubirata, família da cidade de Pelotas, no estado do Rio Grande do Sul.
Assim, os irmãos Rochele e Renan andaram anos e anos de braço dado no judo. Com ele, três anos mais velho, a puxar sempre por ela.
«Foi o meu irmão que me abriu os horizontes. Ele era mais dedicado do que eu, mais disciplinado, e eu cresci muito por tê-lo como companheiro de treino», reconhece Rochele, em conversa com o Maisfutebol.
Em 2018, contudo, os dois irmãos foram obrigados a seguir rumos distintos. Tudo em nome de um sonho.
«Só quando vim para Portugal é que os nossos caminhos se separaram. E foi uma das coisas que mais me custou foi ficar longe dos meus irmãos e pais porque somos todos muito unidos», confessa.
Mas houve mais. A luta pela evolução no judo fez Rochele deixar no Brasil também o marido. Afinal, ele era selecionador da formação na Federação Brasileira de Judo e precisou de ficar no país de origem de ambos.
«Fiquei um ano e meio sozinha em Portugal e foi bem difícil. Só recentemente o meu marido se juntou a mim cá. Antes, encontrávamo-nos em algumas grandes competições de judo e pouco mais», recorda.
É verdade que podíamos ter começado este texto pelas conquistas de Rochele Nunes. Pela medalha de bronze nos Europeus que conquistou em novembro, por exemplo.
Mas todas as conquistas têm um preço.
E o preço mais recente que Rochele teve de pagar foi arrancar-se das raízes. Deixar do outro lado do oceano Atlântico a dona Rosângela, o senhor Ubirata, o irmão Renan, um outro irmão de apenas quatro anos, e o marido, Felipe Quadros.
Um preço alto. Mas não tão alto quanto o sonho olímpico da judoca.
Portugal fê-la deixar de 'sonhar’ com os Jogos: a ambição é o pódio
Em agosto fez dois anos que Rochele Nunes chegou a Portugal para representar o Benfica e, pouco depois, passar a lutar também pelas cores nacionais.
A judoca veio colmatar uma vaga existente na categoria de +78kg, na qual a federação portuguesa pretendeu fazer uma aposta forte.
E a relação para já tem dado frutos. Ao ponto de Rochele já não conseguir fazer contas.
«Nem sei bem quantas medalhas já conquistei para Portugal. Foram umas oito ou nove, mais aquelas que consegui ao serviço do Benfica», atira entre risos.
«Mas falta ainda a medalha de ouro», ressalva de imediato, ela que garante ter ‘A Portuguesa’ na ponta da língua.
«Aprendi o hino ainda antes da primeira competição internacional para não passar vergonha», confessa ,sorridente.
Apesar de ter chegado a Portugal apenas aos 29 anos, Rochele Nunes não tem dúvidas de que isso contribuiu decisivamente para ser neste momento a nona classificada do ranking mundial.
«Vir para Portugal foi fundamental na minha evolução. No Brasil eu era a terceira na minha categoria e era difícil ter o apoio que tenho cá. Além disso, o trabalho individual que comecei a fazer ajudou a potenciar as minhas qualidades e a melhorar nos aspetos em que era menos boa», assegura, elogiando o apoio que lhe foi dado.
«Portugal investiu em mim antes mesmo de eu poder dar retorno. Todos tiveram confiança no meu potencial e deram-me as melhores condições para evoluir», enaltece a atleta que deseja «deixar um legado no judo feminino português».
Para alguém que sempre sonhou com os Jogos Olímpicos – foi suplente nas olimpíadas do Brasil, em 2014 -, poucos meses em Portugal bastaram para fazer sonhar ainda mais alto.
«Logo na primeira competição em que representei Portugal [GP Tel Aviv, em janeiro de 2019], cheguei ao pódio. E isso deu-me confiança e fez-me perceber que tenho todas as condições para derrotar qualquer adversária», resume.
«Por isso, aí o meu objetivo mudou. Eu não quero apenas estar nos Jogos Olímpicos, para os quais tenho a qualificação quase assegurada. Eu quero chegar ao pódio. Esse passou a ser o objetivo», revela.
Com seis provas pontuáveis até à competição que foi adiada para o verão de 2021 devido à pandemia da covid-19, Rochele procura ainda subir lugares no ranking, pelo menos até ao oitavo lugar, que lhe permitiria chegar a Tóquio como cabeça de série.
Rifas e churrascos dos pais financiaram-lhe o sonho
Agora é fácil dizer que tudo valeu a pena.
Porém, não foi apenas Rochele que teve de se sacrificar para se tornar numa das melhores judocas do mundo.
A atleta das águias garante que nunca passou dificuldades, mas também esteve longe de ter tido uma infância de luxo.
«Era apertado para os meus pais. Além do preço do equipamento do judo, havia as deslocações para as competições, num país como o Brasil, que é muito grande», detalha.
Ora, isso obrigou Rosangela e Ubirata a serem… criativos.
«Houve um grande investimento dos meus pais, mas eles sempre priorizaram a nossa educação. Às vezes faziam rifas para conseguirem algum dinheiro. E lembro-me que da primeira vez que viajei de avião, quando tinha dez anos, eles organizaram um churrasco para conseguir o dinheiro», recorda.
A verdade é que os bons resultados acompanharam a formação de Rochele que teve como ponto alto a medalha de bronze no Mundial de juniores e a de ouro nas Universíadas.
Racismo: a «luta constante» de Rochele
Ao longo da vida de Rochele Nunes, não foram, porém, apenas os bons resultados que a acompanharam.
Algo bem menos agradável tem sido também persistente: o racismo.
No local onde cresceu, apesar de ter sentido desde muito cedo que «não era igual aos outros», a judoca garante que não sentia preconceito.
Porém, num relato à Globoesporte, dona Rosangela revelou que aos cinco anos, a filha já se sentia vítima de racismo. Mesmo que não percebesse ainda o que isso era.
«Eu não me recordo de nenhum episódio específico do que a minha mãe contou. Mas lembro-me que havia muito poucas famílias negras no meu bairro e de me sentir diferente. Parecia que não me sentia representada», declara.
«Só no judo é que não me sentia diferente. É um desporto que exige muita disciplina e eu sempre me destaquei, por isso não sofri. Pelo contrário, as minhas conquistas deram-me poder», orgulha-se.
Em outubro, porém, já em Portugal, Rochele voltou a ter de lutar contra atos racistas após um quinto lugar no Grand Slam de Budapeste.
E aí não conseguiu calar a revolta, partilhando as mensagens ofensivas que recebeu, ainda que garanta estar de pazes feitas com a situação.
«Eu tento não ligar a isso porque sei que as frustrações de quem tem esses gestos não são as minhas. É uma luta constante na qual tento ser superior, mas nem sempre dá para suportar. Aquilo que tento fazer é melhorar na comunicação dessas situações para mostrar que quem sofre com elas tem de ser mais forte», defende.
«Nessa situação, eu tive raiva mas não respondi. Porque acho mesmo que aquilo não é um problema meu, mas das pessoas que o fizeram. Eles é que têm um problema», sublinha.
E vai ser no tapete, a fazer aquilo que adora e que é uma das melhores do mundo, que Rochele vai continuar a lutar.
No judo, claro. Mas também sempre pronta para voltar a derrubar o racismo.