«Mais longe e mais alto» é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.
27 anos na certidão, 21 de karaté, 15 títulos de campeã nacional, 13 de seleção, seis medalhas europeias.
Esta contagem é decrescente. Mas o currículo de Patrícia Esparteiro foi sempre a somar.
Começou no ballet com três anos. Aos seis, decidiu que queria pisar o tatami. Ainda pensou na ginástica artística… Mas também foi artista com o kimono.
Em abril, desenha a última obra de arte marcial. Fá-lo em casa. Em Matosinhos, na Premier League. É um adeus (ou um até já). Especial, para uma das atletas de referência no panorama nacional do karaté, em kata.
Patrícia foi campeã nacional pela 15.ª vez no dia 20, em Santo Tirso. No mesmo dia, anunciou a retirada da alta competição. Sai um uniforme e entra outro, agora na medicina estética.
«Foi a circunstância, em pouco tempo. Eu já me questionava se me continuava a dar prazer, se tirava o maior partido. Não é que treinar não seja produtivo, mas em termos pessoais e de carreira profissional sentia-me um pouco estagnada. Tirei um curso [ndr: licenciada em Enfermagem e pós-graduada em Reabilitação Desportiva] e praticamente não exerci. Senti que, a nível pessoal, faltava alguma coisa nova. Também vi muitos colegas saírem, que me acompanharam bastantes anos. Entretanto recebi uma proposta de emprego, irrecusável, daquelas que aparecem uma vez na vida. Foi o que me fez decidir que realmente estava na altura de pensar mais no meu futuro, porque infelizmente não dá para viver do desporto em Portugal e o karaté, não sendo modalidade olímpica, fica complicado. Tudo se proporcionou e tomei a decisão», conta Patrícia, que já teve sensações diferentes no último título nacional.
«Estava tão descontraída. Até podia ser ao contrário, mas estava tranquila. Correu bem, talvez por essa descontração. Houve pessoas, depois de saberem do anúncio, que me disseram: “notei que estavas diferente, tinhas um brilho diferente”. E nem sabiam que eu ia retirar-me. E eu notei em mim própria que estava noutra zona.»
Com o karaté ausente de Paris 2024 e depois de não ter conseguido o acesso a Tóquio 2020, na primeira e única edição do karaté como modalidade olímpica, Patrícia admite que isso também pesou. Mas vinca o orgulho. «O meu sonho, desde sempre, era ir aos Jogos Olímpicos. Posso não ter ido, mas concretizei o sonho. Ou seja, não é só o objetivo final, mas o processo. Eu desfrutei a 100 por cento do processo, estou de consciência tranquila e adorei, não tendo conseguido não faz disso um mau momento. Claro que se me dissessem que eu tinha oportunidade de tentar 2024, se calhar tentava o grande sonho outra vez».
Dentro de um mês, de 22 a 24 de abril, Patrícia põe um ponto final na alta competição, numa prova de alto nível para a melhor portuguesa do ranking mundial em kata feminino (32.ª).
«Uma Premier League é pior do que um campeonato do mundo. Primeiro, só podem participar os 32 melhores: enquanto no campeonato do mundo cada país só pode levar um atleta, aqui o país pode levar todos, desde que sejam os melhores. Por exemplo, o Japão, que é uma grande potência, já tem quatro. Claro que orgulho-me de dizer que estou no top-32 do ranking mundial. Infelizmente ou felizmente, sou a única portuguesa nesse top-32 e pretendo fazer o meu melhor. Sei, sendo realista, que é um campeonato difícil, mas vai ter um sabor especial, principalmente porque é em casa. Normalmente seria em Lisboa, mas mudaram para Matosinhos. Coincidência ou não vai ser bom por causa disso», atira.
Dos passos no ballet ao karaté
Com três anos, Patrícia deu literalmente os primeiros passos no ballet. Mas queria aprender a defender-se. Mudou para o karaté, aos seis, por vontade própria.
«Praticava ballet há três anos e nunca me deu satisfação (risos). Acho que fui para o ballet só pela indumentária. Entretanto, não sei porquê, aos seis anos disse-me aos meus pais: inscrevam-me no karaté, preciso de defender-me. Nunca precisei de defesa, nem por bullying, nada. Foi mesmo: preciso de saber defender-me. Gostei e fiquei. Há quem pense que foi pelo meu pai, mas o meu pai começou um ano depois de mim», conta.
É certo que o percurso no karaté está recheado de vitórias, mas Patrícia também admite que poderia ter feito outra escolha.
«Aos 13 anos tentei ginástica, mas eram tantos treinos que não conseguia gerir. Andava a correr de um lado para o outro, mas tentei. Se soubesse o que sei hoje, se calhar até estava na ginástica, principalmente artística. Eu adoro e estaria ao lado da Filipa Martins e assim e tenho pena porque é um desporto olímpico e seria sempre, de certeza. Se soubesse o que sei, se calhar tinha optado, mas na altura gostava tanto do karaté que acabei por deixar a ginástica e dediquei-me ao karaté a 100 por cento porque não conseguia gerir horários».
Numa carreira vasta que se confunde com a sua vida, Patrícia chegou à seleção nacional em 2009, altura em que optou pela vertente kata. «É como um combate imaginário. Envolve muita coisa, temos de expressar um combate, mesmo em termos faciais. Temos de estar tão entranhados que tem de transparecer que estamos a fazer um combate com alguém», explica.
Foi em kata, entre tantas outras conquistas, vitórias, pódios e superações, que surgiu a maior alegria desportiva. Minsk, 2019, Jogos Europeus. Medalha de bronze. «Sem dúvida, nada se compara. Já foi um bocadinho daquilo que seriam os Jogos Olímpicos, porque acaba por ser no seio olímpico. Não fui a primeira atleta a lá ir, porque o meu colega Filipe Reis já tinha estado, mas sem dúvida que foi um espetáculo, foi incrível», recorda.
O karaté ainda ali está, mas a rotina já mudou
Os últimos dias já não são o que eram. Mas são de novos desafios.
Habituada a focar no treino de manhã e à tarde e a dar treinos no Wolfpack, clube que representou como atleta antes de ingressar no Sp. Braga em 2020, Patrícia já redefiniu o plano semanal até à participação em Matosinhos para a despedida.
«Já estou em formação e integração clínica. Mexi completamente na rotina. Habituada a treinar de manhã e depois à tarde e dar treinos ao fim da tarde, agora às vezes nem tenho tempo para dar os treinos, têm de substituir-me. Entre formações e integração acabo por ter horários preenchidos e tem sido difícil. Por exemplo, hoje [ndr: ontem, segunda-feira], estava a treinar às 07h, não é normal, porque se fosse a rotina normal ia treinar às 09h ou 10h. Está mais complicado, tenho de gerir-me de outra forma, mas a preparação está a correr bem», afirma, garantindo que vai acompanhar ao máximo os atletas que treina no Wolfpack.
«Eu pretendo continuar com o meu clube, com a equipa de competição que tenho. Tenho atletas bons, também de seleção e não pretendo deixar completamente. Vou estar presente, não sei se a 50, 80, 90 por cento, mas pretendo continuar, pelo menos com essa equipa de competição, eles têm objetivos e não quero dececioná-los e já sou treinadora deles há algum tempo, vou estar sempre ligada, nem que seja ao Wolfpack», assegura.
Diagnóstico ao karaté luso: «Temos alguma dificuldade em manter jovens»
Na conversa com o Maisfutebol, Patrícia evidencia total certeza da decisão. Da história que deixa escrita no karaté. No entanto, e ao analisar o panorama da modalidade em Portugal, sabe que poderia ir mais além, fruto dos seus 27 anos. Crê que é difícil face às condições proporcionadas no país para estar no alto rendimento. No karaté ou até noutra modalidade.
«Temos alguma dificuldade. Para estar em alto rendimento é precisa muita dedicação, muitas horas, muito trabalho e as pessoas tendem a não progredir muito na carreira. O que costuma acontecer é que chega a faculdade e o pessoal desiste, ou afasta-se. Temos alguma dificuldade em manter estes jovens, às vezes grandes talentos, e fazer a progressão para os seniores. Se eu com 27 anos era a mais velha, dá para ter noção das idades médias. Lá fora, se calhar a idade média é mais avançada. Vemos atletas com 40 anos a competir. A número um mundial do meu escalão tem 40 anos. Claro que é um caso à parte, mas é possível. Aliás, o auge no karaté acontece aos 32-37. Ou seja, um jovem de 20 anos tem uma longa carreira pela frente. Até eu ainda teria. Portugal tem alguma dificuldade em agarrar esses atletas. Acho que temos de apostar principalmente nas camadas jovens», aponta.
Outros dois fatores que aponta estão relacionados com as mentalidades no karaté em Portugal e também com a forma como a sociedade olha para o desporto como uma profissão.
«Outro dos problemas, que acho que temos de acabar com ele, é as mentalidades. Os mestres do karaté ainda têm uma mentalidade pequenina e acho que têm de começar a ser mais “open mind”, porque ainda temos aquele estigma: se eu começo com um treinador, não posso nunca mudar. Em vez de caminharmos todos para os mesmos objetivos, acabamos por ser um bocado egocentristas. Acho que precisamos de ser um pouco como o futebol, em que eu estou num clube e se calhar o outro vem e agarra-me e está tudo bem. Acho que temos de dar o salto aí, para que todos possamos evoluir mais. A Federação teve eleições, acho que é preciso reestruturar bem agora, com as pessoas certas e mentalidades certas, para conseguirmos todos evoluir da melhor forma. E a sociedade acho que também não vê isso [ndr: o desporto] como um trabalho. Não é que eu sofresse muito, mas notava: “Ah, o que é que fazes?”. “Sou atleta”. “Ah, isso é que é vida”. As pessoas não conseguem perceber. Se calhar se for um jogador de futebol a dizer isto, o pessoal até entende, mas ser atleta profissional… as pessoas não entendem. É um trabalho! “Você está oito horas sentada à secretária. Eu estou oito horas a treinar”. É, às vezes, a mentalidade do povo português. E nós fazemos muito com pouco. Podemos não ter as melhores estruturas, mas acho que com pouco fazemos bastante.»
Por outro lado, a dificuldade de viver só do desporto pelos apoios. «Eu tive um patrocínio no ano passado, não é normal arranjarmos bons patrocínios. Infelizmente, o karaté é uma modalidade em que é difícil e as regras não ajudam. Não podemos ter quase nada no kimono. Entretanto entrei no projeto olímpico, é diferente porque tinha um apoio do Estado, mas era preciso treinar muito para haver resultados e quando decidi dedicar-me a 100 por cento, não sabia o que me esperava. Por acaso correu bem, mas não tinha apoios. Em 2019 comecei a dar treinos, o que me permitia alguma margem de manobra, mas fica complicado», atesta.
Como na F1: a importância do Sp. Braga para «moldar a máquina»
Quando ingressou no Sp. Braga, em agosto de 2020, Patrícia atingiu a meta de «pertencer a um grande clube». Admite que foi uma ajuda até pelas preocupações que tinha em procurar o apoio psicológico ou nutricional. Ali encontrou a fusão perfeita para «moldar a máquina».
«Não tinha noção que envolvia tanta coisa. Eu tinha apoios em tudo: nutrição, psicólogo, fisioterapia. Um conjunto de coisas em que nunca tive apoios. Até o simples facto de o clube, por exemplo, pagar a inscrição nos campeonatos. É a equipa multidisciplinar que nunca tive e gostei, porque é como um carro de Fórmula 1. Não é só o piloto. Ele para na box e há um sujeito a desapertar um parafuso. É ter várias pessoas a moldar a máquina e faz a diferença», refere.
«Espero ser um exemplo, principalmente às meninas»
Do karaté, Patrícia leva vitórias, títulos e também das melhores pessoas da vida. «Acho que o que marca mais são os bons momentos e as pessoas que conhecemos. Por exemplo, a Mariana Belo é das minhas melhores amigas, terminou a carreira no último Mundial, fazia equipa comigo e agora dedica-se à faculdade, está a tirar Medicina. Outra é a Tânia, que vive do karaté, está na China como treinadora. E mesmo atletas estrangeiros com quem fazemos amizade. Houve uma altura que fiz três meses fora de casa, de país em país com a Tânia, fizemos três ou quatro campeonatos, parávamos em sítios para treinar e é isso que fica. As medalhas, sim, mas muitos bons momentos», conta.
Agora, no papel de treinadora, da forma possível, espera ser um «exemplo». «Não é fácil, mas é possível e pretendo motivar estas camadas jovens a fazer mais e melhor. Tinha uma turma de crianças no meu clube com muitas raparigas e às vezes as pessoas acham que o karaté é um desporto de rapazes, mas é curioso ver que quase só tinha meninas e é bom ver que olham para mim e pretendo mostrar-lhes que é possível. É um desporto rico. Espero passar essa mensagem de esperança e motivação, espero servir como exemplo, principalmente às meninas. Cada vez mais os clubes têm raparigas e espero que se revejam», diz.
Patrícia escreveu, no dia 20, que não está pronta para dizer chega. Ou talvez nunca esteja. E sabe que nunca dirá nunca se a vontade estiver lá. «Não vou dizer que nunca voltarei aos tatamis. Acho que até com 70 anos poderia voltar, se me der o bichinho. Neste momento é o fim na alta competição, mas não vou afastar-me. Vou continuar a praticar e andar por aí».
Contas feitas, foi uma simbiose. Patrícia e karaté. Karaté e Patrícia. «Moldou-me como pessoa. Contribuímo-nos mutuamente».
Venha o round final. Em casa.
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