Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

«A minha mãe deixava-me na praia o dia todo. Eu ia surfar, ficava ali com o pessoal, criam-se laços de amizade… É o sonho de qualquer miúdo!»

O sonho do pequeno Miguel Blanco cresceu e cresceu, ao ponto de o surf passar a ser profissão, estilo de vida, ao ponto de se tornar bicampeão nacional de surf e de ter feito capa de uma das mais prestigiadas revistas de surf do mundo.

Agora, a poucos dias do regresso à competição depois do hiato a que a pandemia da covid-19 obrigou, Miguel Blanco falou ao Maisfutebol sobre esta retoma, sobre o futuro, mas também sobre alguns momentos destes 17 anos em cima da prancha, incluindo a melhor viagem de surf da sua vida.

Comecemos pelo agora, já que na próxima sexta-feira e com três meses de atraso, vai então arrancar a edição de 2020 da liga portuguesa, a primeira prova de surf a ser retomada em todo o Mundo depois do surgimento da pandemia, e a terceira competição desportiva a arrancar em Portugal, depois da I Liga de futebol e do Nacional de Velocidade de motociclismo.

Miguel Blanco mostra-se entusiasmado por voltar à competição. «É bom. Até dá aquele nervosinho porque uma pessoa já não compete há tanto tempo. Está habituada àquele ritmo… mas vai ser bom.»

«Estou ansioso pela primeira etapa. Vai ser bom reunirmo-nos todos outra vez. Vai ser diferente, uma estrutura mais simples para não haver ajuntamentos. Vai ser voltar um bocadinho às origens em que os campeonatos tinham a tenda de juízes e pouco mais na praia», conta o surfista, que garante que não sente qualquer receio por voltar a competir numa altura em que Portugal ainda lida com a pandemia.

«Nada mesmo. Estamos a competir no mar. Agora vamos para a Figueira da Foz [primeira etapa], onde nem houve nenhum caso recentemente. Temos de tomar as devidas precauções, mas nem entra na equação criar ansiedade por causa disso.»

«Vamos estar na praia… um estádio de futebol é muito mais complicado e há bastante contacto em jogos coletivos. Em desportos individuais, como o surf, a coisa é bastante mais pacífica», aponta, dizendo que «a própria organização vai ser de modo a que haja o menor risco possível».

«Tomando as devidas precauções, há todo o potencial para podermos dar um show de surf. A praia se calhar não vai estar cheia, mas vai haver live stream. Está tudo muito parado e é bom voltar a haver alguns eventos desportivos, entretenimento saudável.»

Apesar de o estatuto de Alto Rendimento lhe permitir surfar durante o estado de emergência, Miguel Blanco preferiu não o fazer por solidariedade para com os que estavam em casa e para dar o exemplo, mas admite que foi difícil.

«Foi, para qualquer surfista. Nós estamos habituados a estar no mar todos os dias, surfar e, mais do que um desporto, é um estilo de vida. Passamos muitas horas na praia, estamos bastante tempo no mar o que não só é relaxante psicologicamente e em termos emocionais, mas também dá bastante vitalidade, energia. É algo bastante importante na vida de qualquer surfista. Está ali a ver as ondas, entra no mar, tem o seu momento deixa os problemas em casa, fica de cabeça limpa», explica.

«Custou um bocadinho, mas tentei manter-me ocupado de coisas boas ao máximo. Estive sempre bastante ativo a treinar em casa, a fazer treinos online, ioga. Depois quando houve o desconfinamento andei de bicicleta, corri, comecei a surfar», acrescenta Miguel Blanco, adiantando que nem contou quanto tempo esteve sem entrar na água.

«Foi um mês e tal… não contei, não fiquei nessa ansiedade. Quando fosse altura de voltar a surfar, ia e pronto.»

Miguel Blanco garante estar preparado para o regresso da competição. «Trabalhei bastante, fiz os treinos físicos e ioga, e o meu treinador também trabalha a parte de psicologia desportiva, o que também me ajuda bastante.»

O objetivo, para já, é claro: Revalidar o título nacional. «Fui duas vezes campeão nacional e não vai haver mais campeonatos, nem eventos, portanto, o meu foco sem dúvida que está aí», explica Miguel Blanco que também tem os olhos em Tóquio. Frederico Morais já garantiu a presença nos Jogos Olímpicos, mas Portugal ainda pode conseguir mais três vagas.

«Claro que seria o sonho de qualquer pessoa, de qualquer surfista, estar a representar o seu país nos Jogos Olímpicos, mas confesso que é meio estranho o surf nos Olímpicos. Vão decidir quem vai ser campeão Olímpico no Japão, onde a probabilidade de as ondas serem pequenas é bastante grande. É uma etapa, mas eu acho que o surf é muito mais do que um tipo de mar. O melhor surfista é o que se destaca mais em vários tipos de mar: ondas grandes, pequenas, esquerdas, direitas… limita um bocadinho», aponta Miguel Blanco, admitindo que «é um grande evento e vai trazer apoios e pode ser mais uma maneira de o surf dar mais um passo em frente.»

Já falámos de presente e de futuro, vamos então recuar no tempo, 17 anos, mais precisamente, até aos sete anos de Miguel Blanco e ao começo desta aventura.

«Eu era daqueles miúdos que parecia que só estava onde não queria estar. Quando era mais novo fiz vários desportos, mas nenhum realmente me pegou e me deu aquela satisfação e prazer. Aos sete anos, quando me mudei de Lisboa para São Pedro do Estoril, a minha mãe pôs-me a surfar ali na praia e fiquei logo aficionado. Vi que era o meu desporto, o meu estilo de vida», conta.

«A minha mãe deixava-me na praia o dia todo. Eu ia surfar, ficava ali com o pessoal, criam-se laços de amizade… É o sonho de qualquer miúdo. O que me fascinou foi, não só o desporto em si, ficar ali no oceano a apanhar as ondas, mas o lifestyle», diz, embora admita: «Quando somos miúdos, às vezes nem temos noção da sorte que temos.»

Mas agora Miguel Blanco tem bem a noção. «Neste momento, sou atleta profissional, mas não faço apenas competição, também faço projetos de vídeo, viagens… Faço aquilo que gosto, tive a sorte de poder transformar numa profissão o estilo de vida por que me apaixonei, de poder ter a minha casa na Ericeira, surfar, passar muito tempo na praia enquanto toda a gente está no escritório, passar mais de metade do ano a viajar. Tenho de aproveitar e de ser grato.»

O atleta, que garante que quer «estar ligado ao surf para sempre», e que vai «continuar a praticar mesmo quando deixar de competir», cedo se apercebeu que queria que o seu futuro passasse pelo surf.

«Aos 13/14 anos, comecei a ter apoios, patrocínios, já adorava surfar e cada vez mais apareciam campeonatos, viagens… fui-me mexendo e a coisa foi acontecendo. Aos 16/17 anos, já sabia que queria ser surfista profissional. Andava a chatear a minha mãe, a dizer que queria deixar de estudar, mas claro que ela não me deixou e obrigou-me a acabar a escola. Ainda pensei entrar na faculdade e congelar a matrícula, mas percebi que nem pensar que queria ir para a faculdade. Queria era apostar no surf a 100% e viajar pelo mundo a surfar. E é isso que estou a fazer», conta.

Numa dessas viagens, aquela que considera a melhor da sua vida, na Indonésia, Miguel Blanco acabou por fazer capa da prestigiada revista Surfer.

«Foi a melhor trip da minha vida por vários aspetos. Apanhei as melhores ondas da minha vida, ondas clássicas durante um mês na Indonésia inteira. Quando estávamos em Nias, por acaso, veio o maior swell de todos os tempos na Indonésia e eu estava no sítio certo à hora certa. Apanhei o maior tubo que apanhei até hoje», conta entusiasmado. E pela imagem, dá para perceber porquê.

«Ainda estive com vários amigos ao longo da viagem. Estive com o Nicolau von Rupp, que é dos meus melhores amigos, no meio da viagem, e com a minha família em Bali, no final. Foi uma viagem muito especial», recorda, acrescentando: «E passado um mês estava em casa de um amigo na Ericeira e recebi a notícia de que tinha sido capa da Surfer Magazine. Nem queria acreditar.»

«Estavam lá quase todos os melhores big wave riders do mundo. Estava o Billy Kemper, que já foi campeão mundial de ondas grandes, um monte de pessoal… E, no meio disso tudo, ter sido eu, o português, que apareceu lá e apanhou uma grande bomba, e fez a capa da Surfer… O mar estava gigante e havia muita gente com coletes de impacto e eu estava simplesmente de calções de banho… foi uma viagem daquelas. Simplesmente inesquecível», assegura Miguel Blanco.

E não sente medo ao enfrentar ondas daquele tamanho? «Claro, como é obvio. Estamos a falar do maior swell de todos os tempos ali, não apenas um swell grande. Estavam lá surfistas da Austrália, do Brasil, Estados Unidos, do Havai… muitos que correm o circuito de ondas grandes, e estavam ali de propósito para aquele swell, e estávamos todos cheio de medo.»

«O medo é uma coisa constantemente presente nas sessões de ondas grandes, o que faz essa sessão é a forma como controlamos o medo, como gerimos a emoção. Saber até onde podemos ir, mas é uma coisa progressiva. Vamos evoluído, puxando a barreira e quebrando os seus próprios limites cada vez mais», diz o surfista, que conta também que já apanhou «um susto bastante grande no Havai».

«Estava um dia com ondas grandes, havia pessoas já com coletes de impacto, eu não tinha nada. Levei com uma onda, a prancha partiu ao meio, ao pé das quilhas, fiquei sem flutuação nenhuma. Não tinha nada que me levasse para a superfície e continuava a ir lá para baixo e para baixo. Já estava há um tempão na água quando consegui vir acima. Só consegui abrir a boca, nem deu para puxar o ar para o pulmão, e levei logo com outra onda a seguir, fui embrulhado, voltei acima a pensar que ia apagar e fui levado para o alto mar. Por acaso apareceu um jet ski salva-vias que me apanhou e me deixou na praia», recorda.

«Foi um sustozinho que podia ter corrido mal, mas ainda não me aconteceu nada de muito grave», acrescenta.

Miguel Blanco conta que a mãe, que lhe tem dado «muito apoio», vai vê-lo surfar muitas vezes - «Todos os campeonatos em Portugal ela faz questão de tirar os dias e estar lá comigo para apoiar e isso torna os campeonatos mais especiais» -, mas admite que «no fundo ela tem medo».

«Eu também não lhe digo muitas coisas, conto-lhe as coisas meio por alto. ‘Ah, vou ali para a Nazaré…’ Mas ela também, muitas vezes, não quer saber muito», acrescenta.

Questionado sobre qual é o sítio onde gosta mais de surfar, Miguel Blanco afirma: «Gosto de surfar em todo o lado, gosto de surfar onde estou.»

«Há sítios com melhores ondas do que outros, mas, sem dúvida que Portugal é dos melhores sítios do mundo para surfar. Posso também ir à Indonésia 10 vezes que não me canso. Também é um sítio muito especial», explica, garantindo: «Eu adoro viajar, não só pelas ondas, mas também pela cultura, por conhecer as pessoas, ter uma experiência nova, uma aventura. Adoro a comida, os cheiros dos países, os hábitos, a religião…»

Para já, os projetos de viagem estão em águas paradas devido à pandemia. «Este ano acho que vai ser bastante difícil para as pessoas viajarem. Neste momento os meus planos passam por estar em Portugal, talvez quando as coisas estiverem mais calmas fazer uma viagem para apanhar um swell algures… mas acho bastante complicado e não quero, não só expor-me, como dar um mau exemplo.»

«Acho que esta é uma época para as pessoas estarem onde pertencem, junto da sua família, tranquilas. É o momento para termos paciência e esperarmos pelo que aí vem.»