Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Estádio da Luz, 29 de agosto de 1979.

O minuto 72 do jogo entre o Benfica e V. Setúbal, da primeira jornada do campeonato daquela época, está inscrito na história do clube da águia.

Nesse instante, a entrada de Jorge Gomes para a saída de Chalana, fazia do avançado brasileiro o primeiro estrangeiro de sempre a jogar com a camisola encarnada.

Uma medida que só à segunda tentativa passara numa assembleia geral do Benfica e que seria colocada em prática com a aquisição do então jogador do Boavista.

Malmo Arena, 22 de janeiro de 2020.

No primeiro remate que faz no jogo frente à Hungria, em pleno Europeu de andebol, André Gomes marca golo com um remate a 119 km/h.

O golo do segundo mais jovem da comitiva da seleção portuguesa ajuda Portugal alcançar um feito histórico, garantindo a melhor classificação de sempre numa grande competição de andebol.

A ligar os dois pontos de história desportiva tão distinta, há um apelido: Gomes. E laços de sangue, claro. Jorge, o pai, tornou-se histórico no Benfica; André, o filho, inscreveu o nome no feito do andebol português.

«Andebol foi amor à primeira vista? Nãããã…»

Filho de um futebolista profissional, foi natural que o primeiro desporto praticado por André Gomes fosse o futebol, ainda para mais tendo o pai uma escola.

«Mas não gostava muito daquilo. E também não tinha muito jeito», assume, garantindo ter tido total apoio do progenitor, numa história confirmada em parte pelo pai.

«Ele até tinha jeito, mas não gostava muito. Houve um treino em que me disse que não queria mais ser avançado porque tinha de correr muito. Queria ir para a baliza, onde podia ficar encostado. Comprei-lhe as luvas, ele foi para a baliza, até voava bem, mas depois quis mesmo deixar», recorda.

O voo de André só parou depois num pavilhão. E logo no mítico Flávio Sá Leite, casa do ABC, onde chegou levado pelo primo José Costa… «para não andar só na rua», lembra Jorge Gomes e confirma o filho.

«Quando eu tinha nove ou dez anos o meu primo estava ligado ao ABC e desafiou-me para experimentar o andebol, para fazer algym desporto», detalha.

Foi, portanto, amor à primeira vista?

«Nãããã», atira com um sorriso honesto.

«Quando entrei foi só mesmo na desportiva, para ter alguma atividade. Gostava de jogar, mas não era uma paixão. Com o tempo, também pelas vivências com os amigos, comecei a gostar cada vez mais do andebol e a paixão foi crescendo. Os meus treinadores viram que eu tinha jeito, apostaram em mim e cheguei aqui», lembra, numa conversa mantida com o Maisfutebol durante o Europeu, em Malmo.

Mas desengane-se quem achar que o percurso do jogador de 21 anos na modalidade foi fácil. Podia ter sido, tendo em conta o potencial físico e o jeito que sempre demonstrou… mas precisou de um castigo da mãe para «ganhar juízo».

Aos 11 anos, Ana Maria, a outra figura fundamental nesta história, obrigou André a interromper o andebol devido às más notas na escola.

«Os treinadores dele vinham cá a casa, eu tentava convencê-la, mas ela manteve o pulso firme e disse que ele só voltava ao andebol depois de subir as notas», relata Jorge Gomes.

E resultou. Para nunca mais parar. Cumprido o castigo, não demorou muito tempo até que os pais de André Gomes percebessem que as coisas no andebol podiam ficar sérias.

«Percebemos isso quando um treinador que ele teve, o professor Gabriel, me disse para pensar em ter outro filho… porque o André ia fugir», confidencia Ana Maria, ao telefone com o Maisfutebol.

«Ia para o Sporting, mas foi o Benfica que apareceu e eu tinha um avião para apanhar»

Por falar em fuga.

Se André Gomes deixou Braga em 2016-2017 e rumou ao FC Porto, a ‘fuga’ de Jorge Gomes, anos antes, foi bem controversa e com contornos da história de… Eusébio da Silva Ferreira.

Expliquemos: no final da época 1978-1979, a terceira ao serviço do Boavista, Jorge Gomes tinha tudo acertado para assinar pelo Sporting. Já tinha conversado com João Rocha, presidente do Sporting, e só faltava a assinatura, que seria colocada no contrato quando Jorge passasse em Lisboa antes de rumar ao Brasil para o período de férias.

O que aconteceu então para ter sido o Benfica a assegurar a contratação de Jorge Gomes? A história é imperdível.

«Até hoje eu não entendo nada do que aconteceu. Depois de o Valentim Loureiro e o João Rocha terem acertado, ficou combinado que eu iria assinar antes de ir de férias. Mas quando cheguei ao aeroporto quem estava lá era o Gaspar Ramos, dirigente do Benfica. Como eu tinha pressa para apanhar o avião, que até esteve à minha espera, assinei e nem perguntei nada», conta Jorge Gomes.

«Eu não achei aquilo muito normal, até porque sei que o Valentim Loureiro era super-sportinguista e estava a desviar-me para um rival, mas o Benfica deve ter falado mais alto nos números», continua com uma gargalhada.

O resto é história. Ainda que o antigo avançado, atualmente com 65 anos, assuma que não tinha noção da importância do feito que alcançou naquele 29 de agosto de 1979.

«Quebrei uma tradição no Benfica e não tinha ideia da dimensão do que estava a acontecer. Não tinha noção da responsabilidade daquele passo, mas guardo até hoje como um marco da minha vida. Costumo até brincar que fui que abri as portas para todos os que vieram depois», afirma o antigo jogador que, em Portugal conquistou um campeonato e três Taças de Portugal – uma delas pelo Boavista.

«Sem limites» no campo «sem metas» na cabeça

Voltamos a pegar na bola de andebol.

Apesar de ter apenas 21 anos, André Gomes já superou o pai em termos de títulos.

Em cinco épocas como sénior, o primeira linha já conquistou dois campeonatos duas Taças de Portugal e duas Supertaças – curiosamente, conquistou todas as competições tanto com a camisola do ABC como com a do FC Porto – além de uma Taça Challenge pela equipa de Braga.

Qual deles o mais saboroso? Há lá amor como o primeiro?

«Ainda hoje tenho na minha cabeça o jogo do ABC com o Benfica, com o pavilhão [Flávio Sá Leite] cheio e um ambiente como eu nunca tinha vivido. Com pessoas de pé, outras que ficaram barradas na fila. E depois a multidão a entrar no campo no final a felicitar-nos. Tenho tudo isso na minha cabeça», reconhece, ainda que assumindo guardar com muito carinho «o título do ano passado [pelo FC Porto].»

Mais difícil é falar sobre o futuro. Isto, apesar da vontade de experimentar os melhores campeonatos da Europa.

«Quero chegar o mais longe possível. Não tenho uma meta traçada, quero apenas aproveitar ao máximo os anos de carreira, que sei que são poucos», diz André Gomes, antes de assumir a necessidade de emigrar, apesar do salto evolutivo que o andebol nacional tem vivido.

«O andebol em Portugal está a crescer, mas ainda não é o melhor campeonato para um jogador crescer e evoluir. Tenho a ambição de voar para fora, mas cada coisa a seu tempo. Gosto dos melhores campeonatos: o alemão e o francês são os que mais me cativam», confessa.

Mas quais são, afinal, as características que fazem André Gomes acreditar ter capacidade para rumar aos melhores campeonatos. A resposta vem quase a saca-rolhas, mas lá surge.

«A minha melhor qualidade é não ter limites dentro de campo. Várias pessoas dizem que eu sou um atleta fantástico e eu também acho que, dentro do campo, posso fazer aquilo que quiser», descreve, sublinhando ainda o remate como uma das melhores características.

«Sempre tive um remate forte. O chamado ‘remate chicote’. Essa é uma das minhas melhores armas.»

Então e os defeitos? Uii, isso é muito mais fácil e a resposta até vem embrulhada num enorme sorriso.

«Tenho bastantes defeitos, mas aquilo que preciso de melhorar mais é a leitura de jogo. Por vezes não consigo interpretar o jogo, apesar de o andebol ser um desporto simples. Tenho de evoluir nisso», acredita.

«O André não sai a mim, eu ia sempre para cima quando levava pancada»

Quem vê André Gomes em campo, seja com a camisola do FC Porto, seja com a da seleção, percebe que é muito difícil vê-lo enervado. Apesar de não faltarem razões para isso, muitas vezes.

«Logo no primeiro jogo do Europeu eu e a mãe ficámos com o coração na boca, de tanta pancada que ele levou dos jogadores franceses», confessa o pai. «Mas sabemos que o andebol é mesmo assim, um jogo com muito contacto, de choque», continua Jorge Gomes, fazendo o paralelismo com o que ele próprio fazia.

«Nisso, o André já não sai a mim. Eu ia sempre para cima de quem me dava pancada, mas ele sempre foi assim muito calmo. Ele até costuma dizer: ‘o pavilhão pode estar a cair, que eu sou sempre o mesmo’», descreve o progenitor.

Há, contudo, algo que custa mais aos pais do que a agressividade do andebol: a distância do filho. Sobretudo para Ana Maria.

«Quando ele está fora, a mãe derrete-se em lágrimas porque o filho vai para longe, o que é normal», aponta, dando o exemplo do último mês.

«Já não vemos o nosso rapaz desde o dia 26 de janeiro. Veio almoçar connosco no Natal e teve de voltar logo para o estágio da seleção. É normal. Eu também andei lá e sei como é. Às vezes a mãe do André está aqui mais triste e eu tento dar apoio e explicar que foi a vida que ele escolheu», sublinha.

Esse conhecimento e experiência do pai é também referida por André Gomes como importante para a caminhada que ele está agora a fazer.

«Aquilo que eu estou a viver já ele viveu há muito tempo. Tem mais experiência, tem a escola toda. Ele dá-me os conselhos e depois cabe-me a mim decidir acatá-los ou não», refere.

Certo é que se o pai escreveu história, o filho não lhe ficou atrás. E o percurso de André Gomes ainda está a começar. Um percurso que tem tudo para ser de sucesso para um dos andebolistas com maior potencial em Portugal.

André Gomes é um dos rostos do excelente momento que o andebol nacional atravessa. E está pronto para ajudar a escrever os próximos capítulos.

Artigo original: 27/01; 23h50