«Basicamente, toda a gente me dizia: ‘Toma a medicação e cala-te!’ Eu obedecia. Tomava a medicação e ficava calada.» É assim que Sarah Abitbol conta como tentou denunciar a violência sexual de que foi alvo por parte de um treinador, mas apenas encontrou «silêncio organizado». Não é um caso isolado. À medida que se sucedem as denúncias, ganha força a ideia de um código de silêncio que envolveu durante décadas o desporto francês, a desculpabilizar abusos, cuja dimensão começa agora a ganhar forma. A patinagem artística está no centro do escândalo, mas as acusações surgem de várias antigas desportistas, da natação à equitação. E levaram a que fossem finalmente ouvidas.

Abitbol, dez vezes campeã francesa e medalhada em vários europeus e mundiais, tem hoje 44 anos e fez as revelações num livro, que foi publicado no mesmo dia em que o jornal L’Équipe fazia manchete com denúncias de oito antigas atletas. As patinadoras Hélène Godard, Anne Bruneteaux e Beátrice Dumur relatam as suas histórias, envolvendo Gilles Beyer, o treinador de Sarah Abitbol, mais dois outros técnicos, com os mesmos traços comuns: elas adolescentes, entre os 13 e os 15 anos, eles numa posição de autoridade, em casos que remontam aos anos 70, 80 ou 90.

Três nadadoras contam por sua vez ao jornal casos de abuso por parte de um treinador, nos anos 70, que apesar de ter sido condenado por atentado ao pudor continuou em funções. E a antiga tenista Isabelle Demongeot recorda o processo que moveu a um antigo treinador, que seria condenado por violação em 2014, para reforçar a ideia de que as vítimas são muitas, e é preciso ouvi-las. O título que fazia manchete do jornal era «O fim da omertà», uma referência ao código de silêncio e honra associado a algumas organizações mafiosas em Itália.

O impacto destas revelações encorajou mais atletas a falar. Amélie Quéguiner, antiga cavaleira, veio também a público contar como foi vítima do treinador, seu padrasto, e de outros dois técnicos. E ainda nesta terça-feira o L’Équipe publicava um relato igualmente perturbador de outra antiga patinadora, Nancy Sohie, que diz ter sido abusada pelo antigo treinador ao longo de quatro anos: «Roubou-me a adolescência.»

A maior parte dos treinadores acusados negou ou remeteu-se ao silêncio, quando criminalmente os casos já terão prescrito. Gilles Beyer, o treinador de Sarah Abitbol, a quem ela no livro se refere apenas por «Monsieur O», admitiu num comunicado ter tido relações «íntimas» e «inapropriadas» com a sua antiga atleta.

Algumas das revelações não são de hoje. Ao longo dos tempos os sinais estavam lá, tal como algumas denúncias que acabaram abafadas. A organização não governamental «Gigantes com pés de barro» trabalha com escolas e academias na prevenção de abusos sexuais no desporto e o seu fundador, Sébastien Boueilh, antigo jogador de râguebi que foi também vítima de abuso, diz que em todos os locais que visita ouve testemunhos de vítimas. «Alguns clubes e federações preferem «mudar» o problema de sítio em vez de o denunciar, para não prejudicar o seu nome e o desporto», resume, ao site France 24.

«Identificar todas as vítimas»

Gilles Beyer, o treinador de Sarah Abitbol, já tinha sido investigado no início dos anos 2000. Na altura, o governo francês recomendou que fosse afastado do cargo de diretor técnico da patinagem francesa. Mas manteve-se ligado à federação até 2018.

O código de silêncio não envolve apenas dirigentes ou as pessoas ligadas a cada desporto. Sarah Abitbol conta no seu livro que chegou a falar com o então ministro do desporto francês, Jean-François Lamour, sobre Beyer. E que este lhe disse «Vamos deixar como está.» Lamour regiu dizendo que não se lembra dessa conversa e que «se tivesse tido conhecimento dos horrores nunca lhe teria dito para fechar os olhos».

A anterior ministra francesa dos desportos também rejeitava, há dois anos, a ideia de que havia um código de silêncio em torno da violência sexual no desporto. A sua sucessora, a antiga nadadora e medalhada olímpica Roxana Maracineanu, assumiu o problema. E começou por forçar a demissão do presidente da Federação francesa de desportos de gelo, Didier Gailhaguet, que estava no cargo há duas décadas, acusado por Sarah Abitbol e vários outros envolvidos de ter participado no encobrimento dos casos.

Ainda que os factos remontem aos anos 80 e 90, para lá do tempo de prescrição de crimes que venham a apurar-se, a justiça francesa decidiu agir em reação às acusações de Abitbol, numa investigação que pretende apurar a dimensão do problema, para lá deste caso, «procurando identificar todas as outras vítimas».

Os últimos anos têm assistido a revelações sucessivas de abusos. Do movimento «Me too», no mundo do espetáculo norte-americano, ao escândalo que envolveu a ginástica ao mais alto nível nos Estados Unidos. Todos têm em comum o abuso de uma posição de autoridade e de confiança, num ambiente de controlo das vítimas, que promove o silêncio em nome dos resultados e do «bom nome» da organização ou modalidade. O desporto é particularmente vulnerável, como nota o Conselho da Europa, numa iniciativa que tem por nome «Start to talk» e denuncia a dimensão do problema.