16 épocas depois, Márcio Madeira colocou um ponto final na carreira como futebolista. Aos 34 anos, o esquerdino acabou onde tudo começou, como não podia deixar de ser: no Vasco da Gama de Sines, da primeira divisão da Associação de Futebol de Setúbal.
Oito clubes no currículo – mais Benfica e Vitória de Setúbal na formação –, 394 jogos e 165 golos, mas, acima de tudo, uma das histórias mais românticas que o futebol português já viveu.
Márcio atingiu o auge em 2010, quando cumpriu o sonho de representar o Nacional na I Liga e de jogar até na Liga Europa. As coisas não correram de forma fantástica no principal escalão do futebol português e o avançado teve de descer até à II Liga. Aí, destacou-se no Portimonense, foi campeão pelo Moreirense, mas a vida pregou-lhe uma rasteira – e das grandes.
Mas já lá vamos. Primeiro, as explicações para a retirada.
«Conseguia fazer mais uma época, mas teria custos e sacrifícios que não quero fazer nesta altura. Teria de fazer tratamentos e mais alongamentos no final dos treinos para prevenir essas lesões. Aos sábados tinha de ter cuidado, por exemplo, a passear com os meus filhos, tinha de regrar essa parte. E não podia treinar tantas vezes, a recuperação com 35 anos é muito lenta. Eu jogava ao domingo e à terça ainda não conseguia treinar. À quinta treinava muito pouco e só à sexta é que me sentia recuperado», começa por justificar, ao Maisfutebol.
«E isto depois bate na outra parte: os clubes amadores, e o Vasco da Gama em específico, apostam muito na formação e eu estava a tapar o lugar a alguns jovens. Nesta altura é importante jogar quem treina mais, para motivar. Sabia que desde que estivesse disponível ao domingo, dificilmente não jogaria, até porque faço a diferença nas bolas paradas, principalmente. Mas não queria isso. Além disso acho também que os meus registos iam cair, andei sempre a lutar para ser o melhor marcador do campeonato e acredito que este ano isso não ia acontecer. Não queria terminar da pior maneira, a ser substituído, a ser mau colega. Quando as pernas começam a faltar começamos a querer discutir, e as pessoas iam ficar com uma ideia errada minha», prossegue.
Mesmo numa altura em que o mundo vive uma situação inédita, devido à pandemia de covid-19, Márcio foi em frente com a decisão de pendurar as chuteiras. Arrependimentos? Nenhuns.
«Não me arrependo, o campeonato foi assim, é um ano marcante até nisso: teve de ser uma pandemia a terminar com a minha carreira (risos). Prefiro pensar assim de maneira bem-disposta. Depois termino na época em que termina o Madjer, que é uma referência do futebol de praia, quando termina o Mathieu, uma referência do futebol português. Eu sou uma referência do distrital e mereço terminar quando estas referências também terminam.»
Da II Liga para a última divisão do distrito de Setúbal: mesmo inconscientemente, o amor falou mais alto
Como já foi mencionado, o mundo de Márcio desabou em dezembro de 2014, quando cumpria o terceiro ano consecutivo na II Liga, ao serviço do Farense. A mãe do agora ex-jogador faleceu, Márcio ficou sem chão e agarrou-se ao que a vida tem de mais puro: o amor.
Numa decisão surpreendente, Márcio pediu para rescindir com o Farense e regressou a casa, a Sines, para fazer o luto. Inconscientemente, dois meses depois estava no lugar onde tinha começado, o Vasco da Gama de Sines, num ato de romantismo que escasseia cada vez mais no mundo do futebol. Da II Liga, passou para a última divisão do distrito de Setúbal.
«Não procurei nada disso conscientemente [o regresso ao Vasco da Gama]. Aí o que me faltou foi força, coragem, foi tocar a bola para frente, no sentido figurado. Foi ter, no fundo, uma força interior que me levasse a continuar. A diferença esteve no mesmo no interior, que não quis, fiquei muito abalado. E eu, inconscientemente, isso sim, encontrei um conforto e uma estabilidade emocional que sabia que não ia ter noutro lado», confessa.
«Fiz o que qualquer pessoa faria, quando estamos num processo de luto procuramos a nossa casa e estar perto de quem nos faz bem. Foi uma coisa normal, mas os valores estão invertidos e isso teve uma repercussão que não esperava. Se pensarmos bem, fiz o que o que eu acho que todos fazemos numa altura de sofrimento, que é procurar conforto junto das pessoas que mais amamos. Numa segunda fase, quando já estava bem, não me compensava sair de Sines para ir ganhar o que se ganha agora no CNS, então encurtei distâncias», acrescenta.
Numa das alturas emocionalmente mais difíceis da sua vida, Márcio encontrou no clube da terra – e do coração – algum do conforto que precisava para ultrapassar a perda do seu braço direito. Mesmo que quase sem querer.
«Estava em casa e a dada altura comecei a ir ver os treinos dos seniores. Longe de mim eu pensar que ia voltar a jogar lá, andei o janeiro todo a ver o que fazia à minha vida. Comecei a dar umas corridas à volta do campo e, quando faltava alguém, começaram a convidar-me para entrar nas peladas. E comecei a treinar e isso começou a saber muito bem, pela vida. Treinar com os meus amigos soube-me pela vida, malta com quem eu tinha crescido. A atenção, isto é o mais amador possível, alguns pelados eram horríveis. Esse conforto, aliado ao facto de querer continuar a jogar, nem que fosse para isto ter algum sentido, levou a que isso acontecesse», explica.
«O jogador de futebol treina de manhã e não tem vida para mais nada, nem para estudar. Quando deixas de jogar, arranjas 50 coisas para fazer e tens tempo para tudo»
Márcio não mais voltou ao futebol profissional, apesar de ter tido oportunidade para isso, e começou a organizar a sua vida fora dos relvados. Começou por tirar um curso de mecatrónica – com sucesso –, estagiou no Porto de Sines e tornou-se chefe de agência da Carglass local. Atualmente, e depois de mais uma aventura educacional, é motorista de pesados na Câmara Municipal de Sines, função na qual trata do transporte de crianças.
Focado numa nova vida, Márcio não descurou a parte do futebol. Tornou-se coordenador dos petizes e traquinas do Vasco da Gama e é aí que quer continuar a sua ligação ao desporto rei, além da escrita: «A minha ligação ao futebol vai continuar de duas maneiras. Tenho aqui a escolinha, sou coordenador dos petizes e dos traquinas do Vasco da Gama de Sines. Há cinco anos tínhamos sete atletas, hoje em dia temos 70. No primeiro ano a palestra foi dada no balneário, este ano já foi na bancada. Para a próxima época, se a pandemia não atrapalhar, vou dar a palestra para o Meo Arena (risos].»
«Este é o meu primeiro plano. Fazer crescer, ensinar aos miúdos os valores do futebol. Depois a outra parte, tenho uma crónica no zerozero, gosto de escrever sobre futebol e partilhar com os leitores essas experiências», revela.
«Mas é engraçado. O jogador de futebol treina de manhã e não tem vida para mais nada, nem para estudar. Quando deixas de jogar, arranjas 50 coisas para fazer e tens tempo para tudo», aponta Márcio, que descarta por completo treinar num nível mais elevado.
«Era um dos melhores aqui em Sines e quando fui para o Benfica era um dos piores do campeonato nacional»
Marcha-atrás na conversa. Antes de tudo isto, Márcio subiu a pulso na carreira e afirmou-se no panorama profissional do futebol português. Até lá chegar, o esquerdino passou pelo Benfica e pelo Vitória de Setúbal na formação, além do seu Vasco da Gama, claro. Tempos duros, mas de aprendizagem.
«Aquele tempo [do Benfica] não tem nada a ver com o atual, eu não fui para o Seixal, fui para a Luz antiga onde o centro de estágios era debaixo da bancada. É fácil de resumir essa parte da minha vida: eu era um dos melhores aqui em Sines e quando fui para o Benfica era um dos piores do campeonato nacional. Estes meios mais pequenos depois enfrentam uma realidade que não tem nada a ver com a sua terra. Eu aqui era o maior e lá era igual aos outros. O meu pé esquerdo lá era igual aos outros», argumenta.
«Depois no Vitória o campeonato era diferente. Fizemos um campeonato fantástico, fomos à terceira fase, feito que o clube só tinha conseguido três vezes. Eliminámos o Sporting, a geração do Ronaldo, em Alcochete, numa altura em que o Sporting dava um pontapé na relva e saía um jogador feito», recorda.
«Se tivesse tido uma lesão tipo rotura de ligamentos no Nacional que pudesse usar como desculpa, era melhor»
A passagem para sénior foi complicada, Márcio regressou ao Vasco da Gama de Sines, antes de se estabelecer na terceira divisão, em clubes como o União Micaelense, Operário Lagoa e Juventude de Évora.
Em 2010, o maior salto da carreira: o Nacional chamou e Márcio aterrou na Madeira para cumprir o sonho de jogar na I Liga. Conseguiu-o, mas sem grande regularidade. Em dois anos, fez 13 jogos e marcou um golo. E aponta quatro fatores para isso: Edgar Costa, Daniel Candeia, Mateus e Rondón.
«Estes quatro fatores impediram que a minha afirmação no Nacional fosse conseguida. Basta ver onde é que eles ainda jogam. Era uma concorrência muito boa, com mais qualidade do que eu. Aprendi e bebi o máximo que pude desses dois anos. Para a qualidade que eles apresentaram, os poucos minutos que tenho foram muitos e saborosos, até porque fiz valer cada minuto. Ainda fiz assistências, estreei-me num jogo épico, em que entrei e faço a assistência para o golo. Aparecer ali no Nacional a jogar para Liga Europa e ter minutos foi fantástico. Aprendi muito e deu-me uma grande bagagem», assegura.
Sincero, Márcio não se esconde atrás de desculpas para justificar as aventuras menos proveitosas que teve ao longo da carreira. «Eu dizia isto às vezes a brincar: se tivesse tido uma lesão tipo rotura de ligamentos no Nacional que pudesse usar como desculpa, era melhor. Mas vamos estar aqui a mentir? Não é preferível reconhecer mérito e valor aos outros? Estou a tirar valor a mim por dizer que os outros são melhores?», reflete.
«Nós, jogadores, não conseguimos admitir as nossas falhas porque isso faz-nos parecer fracos. E eu acho que quem reconhece as falhas é mais inteligente, não é mais fraco. Se souber as minhas falhas consigo corrigi-las. Eu serei o único jogador em Portugal que não jogava porque simplesmente os outros eram sempre melhores. Vejo a vossa rubrica «Depois do Adeus» e vê-se isso. Eu agora tinha de inventar uma lesão qualquer para me justificar, mas não, todos gostavam de mim, desde o presidente ao treinador. Só não jogava porque os outros eram melhores», atira.
Depois de uma carreira de muitos altos e baixos, alegrias e tristezas, golos e assistências, Márcio Madeira pendura as chuteiras e vira-se, definitivamente, para novas lutas. Sai de cena o romântico de Sines.
Nota: a foto de capa pertence ao facebook pessoal de Márcio Madeira.