A morte de Mahsa Amini revolta a mais insensível das almas: era uma menina de 22 anos, natural de uma pequena cidade na fronteira do Curdistão, educada de acordo com as regras de uma família religiosa e conservadora.

Não tinha qualquer historial de ativismo político.

Pouco antes de celebrar os 23 anos, viajou para Teerão. Queria visitar familiares, conhecer a capital e comprar uma prenda para ela própria.

À saída do metro, no centro da cidade, quando se encontrava acompanhada pelo irmão, foi interpelada por um polícia e acusada de não ter o véu colocado corretamente. Foi então levada para a esquadra, de onde só saiu duas horas depois.

Em coma.

Não se sabe ao certo o que se passou na esquadra. Há versões contraditórias. Sabe-se, isso sim, que a jovem estava contente por visitar Teerão, como partilhara nas redes sociais, ao lado de uma fotografia em que surge com o véu a tapar-lhe praticamente todo o cabelo.

Sabe-se também que o irmão implorou aos agentes da moralidade que não a levassem, lembrando que vinham da província, e que desde então Mahsa Amini se tornou uma mártir, que inspirou milhares a virem para as ruas do Irão protestar contra a opressão.

O regime respondeu às manifestações em várias cidades com uso da força, prisão e corte da rede de internet. De acordo com os números mais recentes, 154 pessoas foram mortas.

Ora perante a repressão e a limitação de informação, os iranianos olham para os jogadores como embaixadores do povo. A seleção tem tido um enorme protagonismo internacional, esteve em quatro dos últimos cinco mundiais e tem representantes em países como Portugal, Alemanha, Inglaterra, Países Baixos, Grécia ou Turquia.

Tem por isso a voz que falta a muitos iranianos, e não se tem escondido.

O primeiro a mostrar-se contra o regime foi Zobeir Niknafs, jogador do Esteghlal. No Instagram publicou um vídeo a rapar o cabelo, numa manifestação associada à luta das mulheres iranianas.

«Este é um gesto simbólico, em memória de Mahsa Amini e de todos aqueles que morreram oprimidos, e também para expressar solidariedade e simpatia a todo o povo iraniano.»

Uma atitude de tremenda coragem. Não só por ser a primeiro, mas sobretudo porque Zobeir Niknafs, ao contrário de muitos outros atletas, vive e joga no Irão.

«Se eles são muçulmanos, que Deus me faça infiel»

Sardar Azmoun, avançado do Bayer Leverkusen, é a principal estrela do futebol iraniano e tem sido também o principal líder da revolta na seleção contra o regime.

Durante a última data internacional publicou uma story no Instagram a dizer que os jogadores tinham ordens para não abordar o tema, mas que não conseguia calar-se.

«Se eles são muçulmanos, que Deus me faça infiel! O pior que me pode acontecer é ser expulso da seleção nacional. Sem problema. Sacrifico isso por um fio de cabelo nas cabeças das mulheres iranianas. O que se está a passar nunca será apagado da nossa mente. Eu não tenho medo de ser expulso. Vergonha para vocês por tão facilmente matarem o nosso povo. Vida longa às mulheres iranianas», escreveu.

Um dia depois do Irão defrontar o Senegal, Azmoun voltou a carregar sobre o regime.

«O meu coração está partido por Mahsa Amini e por todas as pessoas inocentes. Partiram e deixaram uma dor que a história nunca esquecerá. Estarei sempre ao vosso lado quando algo mau acontecer. Quero ser o primeiro a estar lá para vos apoiar.»

O exemplo de Sardar Azmoun não morreu solteiro.

A seleção inteira do Irão juntou-se à sua principal estrela e nesse jogo com o Senegal, realizado na Áustria, todos os jogadores entraram em campo e ouviram o hino trajando um casaco preto. Sem a bandeira nacional, nem qualquer referência ao país.

Taremi une-se à luta e garante que também é um deles

Após o jogo, vários atletas colocaram uma imagem negra na foto de perfil das redes sociais. Mehdi Taremi foi um dos primeiros a fazê-lo, e um dia depois foi mais longe: partilhou um longo texto no Instagram que não deixava dúvidas sobre de que lado estava.

O texto, refira-se, surgiu na sequência de vários ataques de iranianos, que o criticavam por não apoiar Azmoun na condenação ao regime.

«Não há necessidade de escrever que também sou uma dessas pessoas. Aquele que trabalha pela felicidade dos seus compatriotas nunca vai suportar ver a sua infelicidade. Os acontecimentos das últimas noites não são dignos de pessoas nobres. Não é o Irão. Fiquei envergonhado ao ver certos vídeos, especialmente o que mostraram comportamentos incorretos e violência contra as mulheres», começou por escrever.

«Em que língua as pessoas devem expor os seus problemas e preocupações para serem ouvidas? O governo tem o dever de proporcionar bem-estar e conforto ao honrado povo do Irão. A violência e o uso da força contra as pessoas não resolvem nenhum problema e não são aceitáveis de forma alguma.»

Três dias depois, o avançado foi figura de destaque na vitória do FC Porto sobre o Sp. Braga, mas não festejou nenhum dos quatro golos que a equipa marcou.

«Estou feliz pelo lado do FC Porto, vencemos. Mas, pelo que está a acontecer no Irão, não podia festejar os golos. Não podia por respeito ao meu povo. Estou cá por causa deles também», referiu, em declarações ao Porto Canal.

Dois internacionais detidos e muitos pedidos de libertação

Entretanto, no Irão, os protestos continuavam e dois jogadores internacionais foram detidos sob acusação de terem instigado a revolta contra o regime através das redes sociais.

Kaveh Rezaei, antigo jogador de Brugge, Charleroi e Leuven, atualmente a representar o Tractor, e Hossein Mahini, antigo capitão do Persepolis, que pendurou as chuteiras há um ano, foram por isso presos pela polícia.

A prisão do segundo provocou vários pedidos de libertação, um dos quais partiu também de Mehdi Taremi, e o antigo jogador saiu após pagar uma caução de trinta mil euros.

Karimi e Ali Daei juntam-se à luta do povo

Mais sorte tiveram as duas grandes estrelas da história do futebol iraniano.

Ali Karimi, antigo jogador do Bayern Munique e do Schalke 04, conhecido no Irão como o Maradona da Ásia, escreveu que o país estava «órfão», adiantou que «nem água benta conseguirá lavar esta desgraça» e publicou várias mensagens a dar força aos manifestantes.

O antigo internacional vive no Dubai e é uma voz de longa data contra o atual regime iraniano. Já foi, por exemplo, chamado de líder moral no exílio. É visto como um herói pelos iranianos e as suas publicações nas redes sociais frequentemente ultrapassam os cem mil likes.

Nos últimos dias Karimi foi acusado pela justiça iraniana de «reunião e conluio ilegais com a intenção de agir contra a segurança nacional». Foi então solicitado à Interpol que o detivesse, para ser extraditado, o que naturalmente foi negado.

O máximo que o governo conseguiu foi confiscar-lhe a casa em Teerão, o que rapidamente foi revertido, depois de se perceber que o antigo jogador já tinha vendido o imóvel.

A outra grande estrela do futebol iraniano, e porventura a maior de todas, é Ali Daei. Foi até há pouco tempo o máximo goleador na história das seleções, apenas ultrapassado por Cristiano Ronaldo, e é um nome reconhecido praticamente em todo o mundo.

Antigo jogador de Bayern Munique e Hertha Berlin, também ele se uniu aos protestos: publicou uma animação do movimento «Libertem o cabelo» nas redes sociais e manifestou o apoio às mulheres iranianas. «Estarei sempre ao vosso lado», escreveu.

Neste caso, e como Ali Daei ainda vive no Irão, houve consequências e o passaporte da maior estrela do futebol local foi confiscado.

Em 2018 o capitão da seleção já tinha desafiado o presidente

Nesta altura vale a pena lembrar que o apoio dos jogadores de futebol à luta das mulheres não é de hoje. Em 2018, por exemplo, foi notícia em todo o mundo o discurso do capitão Masoud Shojaei na receção oficial no Palácio Presidencial, antes do Mundial da Rússia.

«Peço que definam um trajeto para que as mulheres possam também vir aos estádios no futuro», referiu o capitão.

Foram palavras de tremenda coragem, mas foi sobretudo um grito de alerta, lançado em pleno Palácio Presidencial, e perante o chefe do governo.

O presidente Hassan Rohani era um opositor da presença das mulheres nos estádios, mas não era o principal problema: esse estava do lado dos radicais religiosos e sobretudo do Aiatolá Ali Khamenei, que segundo o sistema político é o líder supremo do país.

Masoud Shojaei já tinha também apoiado o Movimento Verde do Irão, que pretendia a queda do presidente Ahmadinejad do cargo, e já tinha aceitado defrontar equipas israelitas, o que é proibido aos jogadores iranianos. Por causa disso foi afastado da seleção durante uns tempos. Os protestos populares, porém, obrigaram o governo a readmiti-lo na equipa.

No fundo é a história dos futebolistas iranianos.

Num país onde o futebol, e sobretudo a seleção, têm uma popularidade difícil de igualar, num país também onde a repressão faz parte do dia a dia e o acesso à informação é restringido frequentemente, os futebolistas são heróis com uma voz que as pessoas não têm.

Os iranianos esperam muitas vezes que eles contem ao mundo as injustiças do regime, e a verdade é que os jogadores frequentemente o fazem.

Porém nunca como agora. Porque a morte de uma menina, que só cometeu o crime de trazer o véu ligeiramente mais largo, tem de valer alguma coisa no final de tudo isto.

Ela, que só queria conhecer a capital e comprar uma prenda.