«O primeiro encontro FC Porto-Benfica realizado no Porto depois daquele que as equipas disputaram e ficou histórico pelos incidentes que o esmaltaram decorreu com a maior cordura, nada havendo a não ser pequenas e insignificantes escaramuças entre jogadores.»

Viajámos no tempo, estamos em 1935 a ler o jornal Os Sports. Este é o relato de um jogo que chegou com FC Porto e Benfica de costas voltadas, a meio do primeiro corte de relações da história. E que rivalizou nos jornais da época com as notícias do avanço do nazismo pela Europa e entrevistas na imprensa portuguesa a Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler. Houve caso no balneário do FC Porto e um jogador do Benfica transferido de véspera, diretamente para o onze. Um «match» com «foros de sensacional» que teve «formidável assistência», foi transmitido via rádio artesanal e em poderosos «alto falantes». O primeiro FC Porto-Benfica de sempre para a Liga acabou de completar 85 anos. E o Maisfutebol voltou lá para ver como se viveu, pelo olhar da imprensa da época.

Jogou-se a 3 de fevereiro de 1935 no Estádio do Lima e ganhou o FC Porto, que haveria de vencer essa primeira edição dos «Campeonatos das Ligas». Era a grande inovação da época, uma nova competição que eram duas – a 1ª Liga e a 2ª Liga. Nasceu depois do choque da humilhante derrota de 9-0 sofrida por Portugal frente à Espanha, em março de 1934, e do debate que se seguiu sobre a necessidade de contrariar o atraso do futebol português, dando-lhe a regularidade competitiva que as competições regionais e o Campeonato de Portugal, prova por eliminatórias, não davam.

Participaram oito equipas nesse primeiro campeonato: quatro de Lisboa (Benfica, Sporting, Belenenses e União Lisboa), duas do Porto (FC Porto e Académico), mais o Vitória de Setúbal e a Académica. A nova competição foi recebida com expectativa. «Basta que todos se compenetrem dos seus deveres e teremos seguro o êxito da iniciativa», avisava o jornal República. Há 85 anos.  

A nova Liga arrancou a 20 de janeiro. «Foi completo o êxito desportivo da primeira jornada dos campeonatos das Ligas», titulava Os Sports, ainda que com a ressalva de que financeiramente, presume-se que ao nível de bilheteira, os resultados não tinham sido animadores. «O que tanto pode ser prenúncio mau como não representar nada.»

O FC Porto-Benfica estava marcado para a terceira jornada, onde os dois chegavam iguais, depois de uma vitória e um empate para cada um. Era a primeira vez que se defrontavam depois da confusão de 1933 que deu origem ao primeiro corte de relações oficial. Foi na Constituição, para os quartos de final do Campeonato de Portugal. Essa goleada do FC Porto, um 8-0 para a história, acabou com agressões no balneário e vários jogadores do Benfica suspensos. Está aqui contado.

As relações seriam reatadas no final de 1935, após uma troca de correspondência entre os presidentes dos dois clubes. Mas nesse início do ano ainda era incerto em que ponto estavam as coisas. Na imprensa procurava-se passar antes do jogo uma mensagem de pacificação. «O passado jamais poderá exigir que se cumpram reivinditas pouco nobres», escrevia o Jornal de Notícias: «Benfica e FC do Porto são os dois principais clubes da Lusitânia e, por conseguinte, têm que cumprir uma missão que sirva para orientar esses milhares de agremiações que existem pela nossa terra.»

O «match» tinha «foros de sensacional», como dizia o anúncio publicado em vários jornais a anunciar um comboio especial da CP para levar adeptos de Lisboa ao Porto, por 50 escudos.

Waldemar, caso no balneário portista

Nos dias que antecederam a partida, um caso agitou as hostes portistas. O médio Valdemar, à época Waldemar, teria sido protagonista de um confronto no balneário sobre o onze para o jogo com a Académica, da segunda jornada da Liga. «Nada mais falso», garantia o «Norte Desportivo», numa notícia que tinha por título «Nem todas as vozes chegam ao céu» e dizia que o problema tinha origem em informações contraditórias por parte de diferentes diretores do clube sobre quem jogaria: «Waldemar muito respeitosamente disse-lhes que o grupo que se estava a equipar era aquele que dois directores lhe tinham comunicado e que não seria muito justo que momentos antes do encontro se estivessem a fazer modificações.»

Como faziam nos grandes jogos, os portistas concentraram-se na Quinta da Vinha, no Douro, propriedade de Sebastião Ferreira Mendes, ex-presidente do clube. E Valdemar lá estava, ainda que de candeias às avessas com os jornalistas, como contava o mesmo Norte Desportivo no dia do jogo, depois de ter tido acesso ao estágio portista. Privilegiado e descrito em manchete no dia do jogo, com declarações de vários jogadores a acompanhar. Em relação a Valdemar, para tudo ficar sanado, publicou-se uma mensagem do jogador, no Norte Desportivo.

A «carta de desobrigação» ao benfiquista Gaspar Pinto

Do lado do Benfica, as novidades nas vésperas do jogo eram a disponibilidade de Gaspar Pinto, o lateral que tinha sido contratado ao Carcavelinhos e faria uma longa carreira com a camisola das águias, bem como uma despenalização do médio Pina. «A notícia sensacional de ontem foi esta: a AFL aministiou o jogador Álvaro Pina e o Carcavelinhos deve ter passado a carta de desobrigação a Gaspar Pinto», escrevia o República. Passou mesmo, está visto, uma vez que ele entrou direto para o onze.

No Porto o jogo foi preparado cuidadosamente, com anúncios nos jornais a informar os adeptos sobre os locais de entrada no estádio.

E com os jornais a promoverem emissões especiais, num tempo em que ainda não havia emissoras nacionais de rádio. O Jornal de Notícias informava que iria transmitir o jogo «por intermédio de dois poderosos alto falantes» e Os Sports e Diário de Notícias anunciavam uma transmissão engenhosa: «Por intermédio da estação CT1 DH de que é proprietário o nosso amigo Raul Sales.»

A ficha do jogo:

FC Porto-Benfica, 2-1

3ª jornada do Campeonato da Liga

3 de fevereiro de 1935

Estádio do Lima, Porto

Árbitro: Manuel Oliveira

FC PORTO: Soares dos Reis; Avelino Martins e Jerónimo; João Nova, Álvaro Pereira e Carlos Pereira; Lopes Carneiro, Valdemar Mota, Acácio Mesquita, Artur de Sousa «Pinga» e Carlos Nunes.

Treinador: Joseph Szabo

BENFICA: Amaro; Gatinho e Gustavo Teixeira; Albino, Pina e Gaspar Pinto; Domingos Lopes, Luís Xavier, Torres, Rogério de Sousa e Alfredo Valadas.

Marcadores: 1-0, Lopes Carneiro, 15m; 2-0, Pinga (gp), 60m; 2-1, Valadas.

«De Lisboa vieram desportistas às centenas»

Entre a assistência estava o então selecionador nacional, Cândido de Oliveira. E muitos adeptos. O ambiente no campo, diz quem lá estava, foi simpático. «Porto e Benfica, que de relações cortadas eram obrigados a lutar, hoje, pelo melhor lugar, mereciam, na verdade, formidável assistência. E assim aconteceu, na verdade. De Lisboa vieram desportistas às centenas», escrevia o Norte Desportivo.

Estava marcado para as 15 horas e até começou mais cedo, às 14h50. Outros tempos. «Saiu o Benfica, que atacou logo, registando-se uma grande defesa de Soares dos Reis, aos pés de Torres», relatava o Diário de Lisboa. Literalmente, que os repórteres acompanhavam o jogo ao telefone com as redações, para garantir que a informação chegava depressa. No caso dos vespertinos, como o Diário de Lisboa ou o República, a tempo de ser impressa e estar nas mãos dos leitores ainda no próprio dia. O Norte Desportivo também fazia sair uma edição especial ao domingo à noite com os resultados do dia.

«Sob o aspecto correção, a partida agradou plenamente, como agradou o modo decidido como o desafio correu. Tecnicamente, a primeira parte valeu mais que a segunda. O FC Porto, nesse meio-tempo, jogou como em dia grande e o Benfica nem por ser dominado com insistência deu mostra de falta de ânimo», resumia a crónica d’ Os Sports, do jornalista e antigo selecionador Ricardo Ornelas, enquanto no Norte Desportivo se falava em «erros de categoria» do árbitro, prejudiciais ao FC Porto. Aparentemente a maioria dos adeptos era da mesma opinião. «O público assobia o árbitro na sua passagem para o balneário, em virtude do seu trabalho que tem prejudicado bastante a equipa azul e branca», relatava o Norte Desportivo ao intervalo.

Os «goals» e o penálti repetido, porquê mesmo?

O primeiro golo chegou aos 15 minutos. «Um cerrado ataque dos lisboetas é desfeito por Valdemar, que passa a bola a Nunes. Este centra e Lopes Carneiro marca o primeiro «goal» do Pôrto, sem defesa possível para Amaro. A assistência aplaude com entusiasmo o feito dos rapazes do Pôrto», relata o República. O segundo foi marcado aos 60 minutos por Pinga, a estrela portista, de penálti, num lance que deixou o repórter do República algo confuso: «Na jogada seguinte, Gustavo mete mão dentro da grande área e o árbitro assinala. Pinga atira o penalty para fora; porém, o árbitro manda repetir a penalidade, não sabemos porquê. Pinga volta a shootar. Amaro defende, mas não segura a bola, e o mesmo jogador, em recarga, mete o segundo goal do Pôrto.» Valha a sinceridade. E valha a explicação n’Os Sports: «O árbitro fez repetir o pontapé por estarem dois jogadores do Benfica na área de «penalty» no momento da aplicação.»

O golo do Benfica chegou dois minutos depois. De novo o República: «A bola vai ao centro. Torres passa a Xavier, este a Valadas e o ponta esquerdo do Benfica bate Avelino em corrida e atira, a contar, o primeiro goal do Benfica.»

Primeiro e único. A partir daí o jogo começou «a monotonizar-se». E acabou assim: Pôrto, 2-Benfica, 1.

Goebbels para português ler e um assassinato nazi

O FC Porto-Benfica fez manchete na imprensa desportiva, ainda que n’Os Sports a par com a vitória do Sporting sobre o Académico, no mesmo dia. Entre os jornais generalistas, o vespertino Diário de Lisboa fazia manchete no próprio dia com o jogo, numa edição que tinha na página 4 uma entrevista ao «dr. Goebbels».

O ministro da propaganda do regime nazi fez aparentemente uma operação de charme junto da imprensa portuguesa por esses dias e aparecia também em entrevista no Diário de Notícias no dia a seguir ao jogo, mas aí com direito a manchete: «O dr. Goebbels, pensamento e acção ao serviço de Hitler». O DN tinha aliás chegado também à fala com o próprio Hitler, dois dias antes. Era o tempo de afirmação do regime nazi, já com contornos sinistros. Também por esses dias, o República noticiava o homicídio do engenheiro Rolf Formis, contestatário do regime alemão: «O terror hitleriano; Crime político ou drama de espionagem? Um engenheiro alemão, dissidente do nazismo, foi assassinado em Praga por três compatriotas seus.»