De Norkkoping a Gotemburgo, Just Fontaine escreveu em três semanas, seis jogos e 13 golos a história que o tornou eterno. O antigo internacional francês faleceu aos 89 anos, mas o seu recorde de golos num só Mundial perdura, tal como a memória do avançado goleador e do homem «cordial» que também foi sindicalista e treinador.

Humberto Coelho conheceu Just Fontaine uns bons anos depois dele ter feito história naquele Mundial de 1958, na Suécia. Fontaine era o treinador do PSG quando o então internacional português trocou o Benfica pela capital francesa, em 1975. «Era uma pessoa muito cordial e era um bom vivant, fumava o seu charuto, contava histórias…», recorda o agora vice-presidente da FPF ao Maisfutebol: «Tinha um relacionamento fácil, amistoso, com um grande poder de comunicação.»

Daquele tempo, o antigo internacional português recorda também a popularidade de Fontaine em França, símbolo daquela que foi durante muito tempo a maior proeza futebolística dos Bleus. «Ele era uma referência no futebol francês. Ele e o Kopa eram os jogadores mais populares dessa geração, falava-se muito dele na imprensa», diz Humberto Coelho, que não chegou a ver Fontaine jogar, mas recorreu «às imagens e às cassetes» disponíveis na altura para descobrir a dimensão do fenómeno, sublimada naquele Mundial de 1958.

Nunca ninguém apontou tantos golos num só Mundial. E ainda hoje, 65 anos depois, Fontaine é o quarto melhor marcador de sempre em Campeonatos do Mundo, tendo jogado apenas um. Essa é a marca que o deixará para sempre na história. O recorde sobreviveu-lhe, como ele previa. Just Fontaine falou ao Maisfutebol em 2010 e antecipou que assim seria: «Começo a acreditar que me vou tornar numa múmia e o recorde continuará por bater.»

Entre as muitas reações à morte de Fontaine, que notam como o seu recorde é provavelmente imbatível, o selecionador francês, Didier Deschamps, também destaca o «homem de grande gentileza».

«Nunca falava do que fez como jogador»

«Justo», como lhe chamaram em França, falou muitas vezes sobre aquele Mundial da Suécia mas, como ele dizia, fazia-o porque lhe perguntavam. Não era ele a puxar o assunto, recorda Humberto Coelho: «Ele nunca falava do que fez como jogador.»

Como jogador, Just Fontaine foi um fenómeno goleador.

Nasceu em Marraquexe, então na região de Marrocos que era um protetorado francês, e foi no USM Casablanca que começou a dar nas vistas. Chamou então a atenção de Mario Zatelli, antigo internacional francês igualmente de origem marroquina, que o levou para o Nice. Tinha 20 anos e nesse ano de 1953 chegou também pela primeira vez à seleção francesa.

A França já estava apurada para o Mundial 1954 e Fontaine foi um de vários jovens que mereceram uma oportunidade no último jogo, com o Luxemburgo. Digamos que se fez notar: marcou três golos nessa vitória do «Bleus» por 8-0. Apesar do hat-trick, não estaria nos convocados para o Mundial da Suíça, onde a França se ficou pela primeira fase.

Continuou a jogar no Nice e por essa altura foi recrutado para o serviço militar, que cumpriu durante 30 meses. Em 1956, festejou o título de campeão francês com o Nice. Pouco depois mudou-se para o Stade de Reims. O clube que era então a maior potência do futebol francês tinha acabado de ver sair Raymond Kopa para o Real Madrid.

Fontaine e Kopa não jogaram juntos no clube, mas na seleção fizeram uma dupla de sonho. «Não tínhamos qualquer relação fora do campo. Mas na área entendíamo-nos de olhos fechados», contou Fontaine ao Maisfutebol, revelando que até partilharam quarto no Mundial da Suécia: «Eu deitava-me cedo e acordava cedo. Ele deitava-se tarde e acordava tarde. Nunca tivemos uma conversa interessante. Depois, o jogo começava e parecíamos almas gémeas.»

Fontaine voltou à seleção em 1956, três anos depois da estreia. Só tinha cinco internacionalizações quando chegou o Mundial da Suécia e nem era titular da seleção. Durante 65 anos, «Justo» recordou com simplicidade e humor as peripécias que rodearam aquele recorde no Mundial 1958.

O recorde com botas emprestadas

Ele tinha sofrido uma lesão grave no joelho na época anterior e só regressara à competição em fevereiro. E só ganhou o lugar no onze dos Bleus por causa da lesão do avançado René Bliard. «Foi no aeroporto, antes de partirmos para a Suécia, que o Albert Batteux (selecionador), que na verdade nem me queria, me disse que ia jogar como avançado-centro», contou à France Press. E também teve de jogar com botas emprestadas, porque as suas estragaram-se ainda antes da estreia no Mundial. Felizmente o avançado suplente, Stéphane Bruey, calçava o mesmo número. 13 golos depois, devolveu-as.

Marcou em todos os jogos da caminhada da França até ao terceiro lugar, até então a melhor participação dos Bleus em Mundiais. Um hat-trick frente ao Paraguai logo a abrir, depois um bis à Jugoslávia e mais um na vitória sobre a Escócia a fechar a fase de grupos. Depois bisou nos quartos de final, com a Irlanda do Norte. Chegou a meia-final com o Brasil, que ainda não tinha sofrido qualquer golo, e Fontaine também marcou. Mas o escrete de Garrincha e do menino Pelé, que apontou três golos nessa final, não deu hipótese. Fontaine fechou o Mundial com um póquer, na vitória sobre a Alemanha (6-3) no jogo pelo terceiro lugar.

«Esse foi o mais belo dos sonhos. Lembro-me de todos os golos que marquei, desde o primeiro ao último jogo», dizia ao Maisfutebol: «O segredo? O mais importante é saber jogar futebol, rematar bem e olhar sempre para a baliza contrária. Essa era a minha maior virtude: com a bola nos pés só tinha olhos para o golo.»

Um hat-trick a Portugal

Desse Mundial, recorda o génio «impressionante» de Garrincha, ele que enquadrava com lucidez o seu lugar na história: «Pelé foi de longe o melhor jogador de sempre. A seguir vem o Di Stéfano e, mais atrás, o Maradona e o Cruyff. Depois há os mortais, onde apareço eu e muitos outros.»

Portugal também foi vítima do instinto goleador de Fontaine. A 11 de novembro de 1959, num encontro particular em Colombes, ele marcou três golos na vitória da França por 5-3 sobre uma seleção nacional que tinha Hilário, Coluna, Yaúca, Cavém, José Águas, José Augusto, Vicente Lucas e o seu irmão Matateu, que marcou dois dos golos portugueses.

A lesão que lhe acabou com a carreira: «Perdoei ao rapaz»

Fontaine apontou 30 golos pela França em 21 jogos, é ainda hoje o jogador com melhor média de golos dos Bleus. Mas também deixou a sua marca com a camisola do Reims: 145 em 152 jogos pelo clube que representou ao longo de seis temporadas e onde foi três vezes campeão francês, além de ter chegado à final da Taça dos Campeões Europeus em 1959, perdida para o Real Madrid. Foi duas vezes melhor marcador da Liga francesa.

A carreira chegou ao fim depois de uma lesão grave sofrida em 1960 num jogo com o Sochaux, numa entrada de Sekou Touré. Na entrevista ao Maisfutebol, Fontaine chamava-lhe um «assassinato», mas diz que acabou por «perdoar» o agressor: «Ainda joguei mais dois anos a mancar. Desisti de fazer figuras tristes em 1962. Deram-me umas cassetes de vídeo com a jogada da minha lesão. Não as vejo, recuso-me. Perdoei ao rapaz que me fez isso e decidi olhar em frente.»

Sindicalista e selecionador por dois jogos

Mais tarde, chegou a dizer que preferia trocar o recorde do Mundial 1958 pela oportunidade de jogar mais alguns anos. Mas Fontaine, como disse, decidiu olhar em frente e seguir o seu caminho. Que passou pelo sindicalismo, desde logo. Em 1961, foi um dos fundadores e o primeiro presidente do Sindicato francês de jogadores, pioneiro na altura. Também tirou o curso de treinadores logo em 1963 mas, segundo conta o L’Équipe, teve de esperar para poder exercer, porque os regulamentos impunham que só aos 35 anos poderia treinar uma equipa profissional.

Em 1967 teve uma experiência como selecionador francês. Muito curta. Fez dois jogos no banco, duas derrotas em particulares com a Roménia e a URSS, e foi afastado. «Não era para mim. Acho que até bati um recorde em França. Durei dois jogos no cargo de selecionador nacional. Tinha 28 anos, era o presidente do sindicato de jogadores e estavam todos contra mim. Não resisti», contou ao Maisfutebol.

Voltou mais tarde aos bancos e em 1973 assumiu o Paris Saint-Germain, o novo clube da capital. Subiu nessa época à Ligue 1 e esse era um dos seus orgulhos. «Sou o único treinador que fez o PSG subir à primeira divisão», costumava dizer, segundo, recorda o L’Équipe.

Humberto Coelho e as memórias de Paris

Ficou três épocas em Paris e foi na última dessas temporadas que chegou Humberto Coelho. «Eu fui diretamente para Evian, onde fizemos o primeiro estágio da pré-época, e ele recebeu-me muito bem. Tínhamos uma boa relação e isso foi importante no início. Marcou-me e ajudou-me muito», diz o antigo internacional português, que recorda também «um bom treinador, uma pessoa conhecedora do jogo».

Fontaine saiu no final dessa época, em que o PSG terminou na 11ª posição na Ligue 1. Ainda teve uma passagem pelo Toulouse e depois voltou a Marrocos para orientar a seleção do seu país de origem. Mas em 1982 deixou o futebol e dedicou-se aos negócios – teve várias lojas de material desportivo – e a várias aparições públicas, incluindo uma experiência efémera como cantor.

Um dia, disse que foi despedido do PSG por ser próximo dos jogadores e «jogar às cartas» com eles. Humberto Coelho sorri: «Sim, jogávamos às cartas. Ele era muito próximo dos jogadores. Jogávamos nas viagens, no hotel ou no comboio. Viajámos muito de comboio. Jogávamos um jogo que era muito popular em França, o Tarot.»