O 10 sempre foi mais do que um número, um dorsal, mais até do que uma posição em campo. O 10 era o craque, o líder incontornável do ataque. Criador e, muitas vezes, também finalizador. No passado, muitas vezes o 10 era o 10, outras camuflava-se noutros números. «Os 10 e os deuses» recupera semanalmente a história destes grandes jogadores do futebol mundial. Porque não queremos que desapareçam de vez. 

Zico, ou a Áustria! Os de Udine e do resto de Friuli ameaçam com o separatismo se a federação italiana continuar a impedir que lá chegue Arthur Antunes Coimbra. É muito dinheiro para clube pequeno, dizem. Mas voltam atrás. Chega mesmo Arthurzico. O Zico da prima Ermelinda. O Pelé Branco de sangue portuga. Filho de pai portuga, e poeta do futebol brasileiro. O Dez-poeta!

Baixo, magro, frágil. Uma pena a voar contra o vento. Um Galinho de Quintino, o bairro onde cresceu a jogar à bola, contra o vento. Começa e acaba no Flamengo, o clube de sempre, emblema da família, porque o Japão já será depois outra coisa. Algo diferente.

Primeiro há que fortalecer. Vitaminas e trabalho muscular; trabalho muscular e vitaminas. O Maracanã entrega-lhe o trono e coroa que serão negados pela história em Campeonatos do Mundo. É um reino mais pequeno, mas é seu. Completamente seu.

Um ídolo do Flamengo.

A falta de força compensa-a com o drible curto, a inteligência e o remate. Com a elegância. Com a classe. No fim dos treinos, amarra uma camisola junto a cada ângulo superior e faz pontaria. Não sai dali até acertar. Uma vez, muitas. Até à perfeição. É a sua assinatura. Ninguém encherá como ele as gavetas das balizas que lhe aparecerão à frente. Um livre à-Zico é um livre especial, com cobertura de açúcar.

Eleva-se à altura de Pelé e Mané Garrincha. Torna-se quase tão grande como eles, mesmo sem os títulos que conquistaram. O golo anulado frente à Suécia em 78, porque o árbitro entendeu ser para lá dos descontos, e a lesão no jogo decisivo depois. A tragédia de Sarriá, em 82. O penálti falhado quatro anos depois, no México, no segundo toque que deu na bola, e depois de tanto esforço para lá estar. É a cara maior de duas enormes deceções, e continua ali no pódio canarinho. Inamovível.

Júnior, Sócrates, Toninho Cerezo em cima, o selecionador Telê Santana, Edinho e Zico em baixo em 1985.

É o Pelé Branco. É por sê-lo que vai para Itália aos 30 anos e por verba recorde para clube brasileiro. Marca menos um golo que Platini com menos seis jogos, porque num amigável que nem queria jogar lesiona-se com alguma gravidade. No segundo ano, assina 12 em 15 partidas e marca passagem de volta ao berço.

Uma entrada assassina, a pés juntos, de um tal de Márcio Nunes, do Bangu, precipita o início do fim.

Antes que o insultem, digo-vos já que o carniceiro abandonará a carreira aos 25 anos, também por culpa de uma entrada mais dura.

Zico em agonia na grama. Entorse nos dois joelhos e no tornozelo esquerdo, lesão na cabeça do perónio. Mozer, desesperado, acaba expulso ao sair em sua defesa. É atirado para a mesa de operações, e força a recuperação para jogar no México. No regresso, nova operação, inevitável. Correctiva. Agressiva. E a certeza de um ano parado, atrofia muscular. Sequelas para a vida. Reaprende a andar, a pisar. Oito horas de trabalho de ginásio para poder voltar a jogar.

Volta! Não tão explosivo, mais cerebral, mas ainda capaz. Prova-o com um hat-trick ao Flu, e diz um primeiro adeus com um livre direto (claro!) em 1989.

Não é ainda o fim. Regressa ainda, torna-se deus no Japão, nos primeiros passos da J-League. No terceiro clube da carreira, o Kashima Antlers, é também treinador. E professor. Lança as sementes do jogo no país.

Pendura as botas ainda como craque, referência incontornável do jogo. Um dos melhores de sempre. Mesmo que os adversários não tenham ajudado. Mesmo que não tenha tido a sorte de outros. Mas despede-se como o gentleman que sempre foi.

Deixo-vos com Zico, senhores, um dos maiores de sempre!

O filme da vida de Zico:

Mais um documentário sobre a sua carreira:

Nome: Arthur Antunes Coimbra (Zico)
Data de nascimento: 3 de março de 1953

1971-83, Flamengo, 635 jogos, 476 golos
1983-85, Udinese, 79 jogos, 57 golos
1985-89, Flamengo, 97 jogos, 32 golos
1991-94, Kashima Antlers, 88 jogos, 54 golos

Palmarés:

1 Taça Intercontinental (1981)
1 Taça dos Libertadores da América (1981)
4 Campeonatos Brasileiros (1980, 1982, 1983, 1987)
4 Campeonatos Carioca (1972, 1974, 1978, 1979)
9 Taça Guanabara (1972, 1973, 1978, 1979, 1980, 1981, 1982, 1988, 1989)

Alguns prémios individuais:

Melhor jogador do campeonato brasileiro (1980, 1982 e 1983)
Jogador revelação do campeonato brasileiro (1979)
Melhor jogador do Mundo Don Balón e Guerín Sportivo (1981)
Melhor jogador do Brasil nas décadas de 70 e 80 (revista Placar)
14º melhor jogador do século XX (IFFHS)
9º melhor jogador do século XX (France Football)
8º melhor jogador do século XX pelo Grande Júri FIFA
Hall of Fame FIFA

Outros artigos da série:

Nº 1: Enzo Francescoli
Nº 2: Dejan Savicevic
Nº 3: Michael Laudrup
Nº 4: Juan Román Riquelme