[artigo original escrito a 12-04-2017, e recuperado hoje devido à notícia do fim da carreira do médio brasileiro]


O 10 sempre foi mais do que um número, um dorsal, mais até do que uma posição em campo. O 10 era o craque, o líder incontornável do ataque. Criador e, muitas vezes, também finalizador. No passado, muitas vezes o 10 era o 10, outras camuflava-se noutros números. «Os 10 e os deuses» recupera semanalmente a história destes grandes jogadores do futebol mundial. Porque não queremos que desapareçam de vez. 

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Um 10 que foi 22, e 8. Mas sempre 10.

A formação inteira é passada com dois anos de atraso, e desconfiança dos treinadores à mistura. Um atraso sem cura médica, não fossem as propriedades regenerativas próprias do tempo. Aos 12, Kaká apresenta uma idade óssea de 10, e a diferença mantém-se nos anos seguintes. Aos 15, está já um pouco melhor, menos frágil, mas é aos 18, perto da passagem para sénior, que o corpo sprinta definitivamente para chegar à maioridade.

Mais de seis horas no ginásio do São Paulo, e um regime alimentar próprio e enriquecido com vitaminas, dão finalmente os seus frutos. Só que o sofrimento ainda não tinha acabado. Suspenso por acumulação de amarelos, ainda júnior, fica perto de deixar o futebol, e o futebol de ficar sem um dos seus 10 mais talentosos e completos.

Dispensado pelo treinador, visita os avós com o irmão Digão. Num parque aquático bate com a cabeça no fundo da piscina. Uns pontos parecem resolver o problema, mas surgem os enjoos e as dores de cabeça, que o levam de novo ao hospital. Trata-se de uma fratura da sexta vértebra, que ameaça deixá-lo paralítico.

«Disseram-me que foi por pouco. Não só podia ter deixado de jogar futebol como inclusive de caminhar. Foi uma experiência muito forte com Deus, é impressionante. Aconteceu em outubro, estive fora dois meses e perdi a titularidade. O treinador da primeira equipa pediu ao meu dois jogadores, um avançado e um médio, e este enviou-lhe o avançado titular, mas não quis fazer o mesmo com o médio em que apostava porque também era o capitão, e enviou-me a mim. Nunca mais desci aos júniores. Acho que não foi uma coincidência, Deus teve um objetivo com esse acidente.»

Ricardo Izecson dos Santos Leite, filho de Bosco, engenheiro-civil, e de Simone Cristina, professora, ganha cedo a alcunha Kaká do irmão Rodrigo (Digão), que não sabe pronunciar o seu nome completo, e é descoberto para o futebol pelo professor de educação física, que o incentiva a treinar num clube.

Na equipa principal do emblema paulista, destaca-se no Torneio Rio-São Paulo de 2001. Estreia-se no Morumbi frente ao Botafogo, clube que ajuda a derrotar na final com dois golos seus. No ano seguinte, é convocado para o Campeonato do Mundo, sagra-se campeão com apenas 25 minutos jogados.

Dez golos em 22 jogos depois pelo tricolor, chega o Milan, e um mundo novo.

«Tive de adaptar-me a um novo clube, num novo país, e a uma língua que não conhecia, longe da minha família. Aprendi que a derrota faz parte do jogo e que precisamos de tirar o melhor da mesma. Foi assim que tive forças para reagir, depois de deixar escapar uma Liga dos Campeões a vencer por 3-0 e de falharmos a conquista do Mundial de 2006, em que eramos favoritos. Dei a volta por cima e fiz de 2007 o meu ano. Conquistei todos os títulos individuais e coletivos que desejava e ainda me afirmei como referência na Seleção.»

Algumas das melhores imagens de 2007: 



Contratado por 8,5 milhões de euros, «preço de banana» para Silvio Berlusconi, cedo o menino Kaká se impõe no conjunto rossonero, onde havia o antigo Príncipe de Florença Rui Costa e ainda Rivaldo.

Torna-se rapidamente ídolo no Milan. Na estreia na Serie A, assina um passe de 30 metros para Shevchenko bater o Ancona e, depois, na quinta jornada, marcar ele próprio no dérbi com o Inter.

O melhor ano é, no entanto, o de 2007, com a vingança frente ao Liverpool na final da Liga dos Campeões, em Atenas, dois anos depois do descalabro de Istambul. Assiste para os segundo golo de Pippo Inzaghi, e garante o troféu. Marca dez golos nessa Champions, alguns mágicos como aquele que destranca os oitavos de final frente ao Celtic, e três no confronto com o Manchester United de Cristiano Ronaldo. Ganha a Bola de Ouro e o Prémio da FIFA, com inteira justiça.

Um dos poucos momentos de felicidade do brasileiro no Bernabéu.

Kaká entra numa nova onda galática de Florentino Pérez, a par de Ronaldo, Benzema e Xabi Alonso, no Real Madrid. No entanto, a aposta forte não rende títulos. A título pessoal, o corpo também volta a traí-lo. Aparecem as pubalgias. Depois, a operação ao menisco.

Mostra o seu talento em um ou outro jogo, festeja uma Taça e um campeonato, mas está longe de tudo o que fora em San Siro. As bancadas do Bernabéu mostram a sua exigência e a saída parece inevitável.

Alguns dos melhores momentos em Madrid:

Regressa ao Milan, mas o Milan já não é o Milan. Os italianos falham o apuramento para a Liga dos Campeões, e Kaká acciona a cláusula que lhe permite sair. Assina pelo Orlando City, onde ainda joga aos 34 anos, e enquanto a época não começa é emprestado ao São Paulo. É já metade do jogador que foi.

O exílio nos Estados Unidos:

Cabeça levantada, visão periférica, uma maturidade e inteligência precoces, dois excelentes pés, com um arranque demolidor e um drible eficaz, Kaká não esteve sempre a tocar o céu, mas voou muito tempo acima dos outros. Um dos grandes, sem qualquer dúvida.

Kaká a representar a equipa de All Stars da MLS.

Ricardo Izecson dos Santos Leite «Kaká»
22 de abril de 1982

1999-2003, São Paulo, 81 jogos, 47 golos
2003-09, Milan, 270 jogos, 95 golos
2009-13, Real Madrid, 120 jogos, 29 golos
2013-14, Milan, 37 jogos, 9 golos
2014, São Paulo, 24 jogos, 3 golos
2014, Orlando City, 51 jogos, 19 golos

Brasil, 95 jogos, 31 golos

1 Campeonato do Mundo (Brasil, 2002)
1 Liga dos Campeões (Milan, 2006-07)
1 Campeonato do Mundo de Clubes (Milan, 2007)
2 Supertaças Europeias (Milan, 2003 e 2007)
1 Torneio Rio-São Paulo (São Paulo, 2001)
1 título italiano (Milan, 2003-04)
1 título espanhol (Real Madrid, 2011-12)
1 Taça do Rei (Real Madrid, 2010-11)
1 supertaça italiana (Milan, 2004)
1 supertaça espanhola (Real Madrid, 2012)
2 Taças das Confederações (Brasil, 2005 e 2009)

Alguns prémios individuais:

Bola de Ouro France Football (2007)
FIFA World Player of the Year (2007)
Melhor do mundo para World Soccer e FIFPro (2007)
Melhor jogador da Taça das Confederações (2009)
Melhor jogador do Campeonato do Mundo de Clubes (2007)
Melhor playmaker para a IFFHS (2007)
Jogador do ano para a UEFA: 2007
Melhor jogador da Serie A (2004 e 2007)
Melhor jogador estrangeiro da Serie A (2004, 2006 e 2007)

Primeira série:

Nº 1: Enzo Francescoli
Nº 2: Dejan Savicevic
Nº 3: Michael Laudrup
Nº 4: Juan Román Riquelme
Nº 5: Zico
Nº 6: Roberto Baggio
Nº 7: Zinedine Zidane
Nº 8: Rui Costa
Nº 9: Gheorghe Hagi
Nº 10: Diego Maradona

Segunda série:

Nº 11: Ronaldinho Gaúcho
Nº 12: Dennis Bergkamp 
Nº 13: Rivaldo
Nº 14: Deco
Nº 15: Krasimir Balakov
Nº 16: Roberto Rivelino
Nº 17: Carlos Valderrama
Nº 18: Paulo Futre
Nº 19: Dragan Stojkovic
Nº 20: Pelé

Terceira série:

Nº 21: Bernd Schuster
Nº 22: Nándor Hidegkuti
Nº 23: Alessandro Del Piero
Nº 24: Gianfranco Zola