* com Ricardo Jorge Castro (Fotografia)

O portão é azul, enorme. Abre-se à chegada do carro de Américo Lopes, 84 anos injetados de saúde. «Aqui é tudo azul, caro amigo. Vai ver.» Assim é.

No refúgio de Américo, o «guarda-redes suicida dos loucos anos 60», só a natureza foge ao tom cuidadosamente pintado. As bombas de águas, as bicicletas, os rebordos de um pequeno lago. Esta é uma propriedade de marca registada: Américo, um homem do FC Porto.

«Estive de 1949 a 1970 no clube. Só saí um ano e meio para ir à tropa. Em Castelo Branco e Abrantes. Mas mesmo aí o FC Porto deu-me um saco com uns calções, umas luvas, uma camisola e um par de chuteiras, para ir treinando. Pagou-me sempre o salário. E estive emprestado ao Boavista uns anitos.»

De passo apressado, «para fugir ao frio», Américo leva-nos ao seu santuário privativo. Um museu de memórias, preenchido ao longo de décadas. «É o meu passatempo, a minha paixão.»

É aí, entre quatro paredes de madeira, que a entrevista ao Maisfutebol decorre. À direita há uma imagem de Américo a voar à frente de Matateu, «num jogo contra o Belenenses», e logo em frente camisolas de incalculável valor. Material e emocional.

«Esta é da seleção do Brasil no Mundial de 66. Esta é da Itália e aquela é da Alemanha. As outras são do FC Porto e da seleção de Portugal», mostra Américo, olhos de um azul profundo e bom. «Mas, afinal, diga-me lá. Quer falar comigo para quê?»

Em semana de FC Porto-Benfica, o nosso jornal recua meio século para recuperar outros clássicos entre estes dois gigantes. Pela mão de um dragão histórico, Dragão de Ouro recebido na recente gala azul e branca. E a conversa vai por ali fora.

Museu de Américo: camisolas do Mundial de 1966 (foto: Ricardo J. Castro)

Maisfutebol – O senhor nasce em Lamas e chega ao FC Porto com 16 anos. A informação está correta?
Américo Lopes – Sim senhor. Nunca antes tinha jogado futebol. Fiz uns treinos aqui no Lamas e disseram-me que tinha jeito para a baliza. E lá fui à Constituição. Treinei e fui logo para os juniores do FC Porto.

MF – É campeão nacional em 1958/59. Mas nunca mais volta a ser até ao fim da carreira.
AL – O FC Porto era um clube desorganizado. Com bons jogadores, mas imaturo. Repare bem: o Benfica veio cá buscar-nos o Serafim, um dos nossos craques. Isso demonstra que havia uma diferença importante. Acho que o Benfica e o Sporting abraçaram mais cedo o profissionalismo. O FC Porto foi melhorando, mas só com a queda da ditadura se conseguiu revoltar em definitivo contra essa dimensão mais pequena.

MF – Em que aspetos notava a desorganização do clube?
AL – Em vários. Mas dou-lhe um exemplo concreto. Eu estive um ano e meio na tropa porque era do FC Porto. Se fosse do Benfica ou do Sporting não tinha lá ficado, os clubes não deixavam. Eu pedi aos responsáveis do FC Porto para me ajudarem a livrar do serviço militar e eles foram sempre adiando. E pagaram-me sempre o salário, veja bem (risos). Tiveram um ano e meio um jogador de farda e que nunca treinou nem jogou. Não ligaram.

MF – É portista desde pequeno?
AL – A minha chupeta era azul e branca (risos). O meu pai tinha uma empresa de cortiças e já era portista. Portanto, está a ver, não tive hipóteses. O FC Porto é o maior amor da minha vida, juntamente com a minha esposa. Não tenho filhos.

MF – Lembra-se do seu primeiro FC Porto-Benfica?
AL – Lembro-me de tudo. Sou um velhote com a cabeça de um menino (risos). 2-1 nas Antas, comigo a defender tudo. Só não me lembro da data [3 de dezembro de 1961].

MF – Como era a atmosfera desses jogos? Ambiente complicado?
AL – Olhe, eu era muito amigo do Simões, do Zé Augusto, do Torres, do Eusébio… Certo dia, na seleção, tivemos um jogo e no final fui ter com o Eusébio. Um bom rapaz, nada maldoso. Disse-lhe isto: ‘para a semana não te armes comigo. Se me apareceres à frente, já sabes. Gosto muito de ti, mas mais ainda do FC Porto’. E ele ria-se. O que quero dizer com isto? Lá dentro era uma batalha, mas cá fora os jogadores davam-se quase todos bem. Salvo raras exceções.

MF – E o Eusébio era mesmo o melhor?
AL – Tinha um pontapé impressionante. Impressionante. Eu defendia sempre sem luvas. Gostava de sentir o couro na pele. Só nos dias de chuva é que punha luvas. Defendi um penálti dele, certa vez. A bola bateu-me na zona abdominal e fiquei enjoado. Mas ninguém soube. Eu era um duro, rijo, e nunca daria parte de fraco. Para responder à sua questão: sim, o Eusébio era superior, estava num patamar acima. É como o Cristiano Ronaldo hoje em dia.

MF – Foi por ser duro que jogou quase um ano com o menisco lesionado?
AL – Ai sabe disso? Em 62 [1 de abril] levei uma pancada no joelho direito, na Luz. Não me lembro quem foi o avançado do Benfica a fazer-me isso. Tive de ser substituído e entrou o meu colega Rui. O problema é que as coisas lhe correram mal. Obrigaram-me logo a jogar e não me deixaram ser operado. Joguei mais de um ano com o menisco estilhaçado. Nem podia rematar a bola. Acabei a carreira em 69 porque o osso do joelho estava a romper-me uma artéria e ia ficar incapacitado para sempre. Por culpa da tal lesão na Luz.

«A minha estreia em Évora? Uma barracada»

MF – Recuemos uns anos. O senhor Américo estreia-se em dezembro de 1952, em Évora. E só quase uma década depois passa a ser titular indiscutível.
AL – Que barracada! Correu tudo mal nesse jogo. A mim e à equipa. Perdemos 3-0 em casa do Lusitano. Eu era um estreante e um dos centrais [Correia] também. Metemos muita água. O senhor Barrigana era o titular da baliza e estava perto do fim da carreira. Depois tive a tropa, mais quatro anos no Boavista e lá cheguei a titular do FC Porto na época de 61/62.

MF – Barrigana foi o melhor guarda-redes que conheceu?
AL – O Acúrsio também era muito bom. E o Vítor Baía foi o melhor que vi nos últimos anos. O Vítor e aquele belga que jogou no Benfica. Como? PreudHomme, isso. Os outros… bem, vão dando um jeito.

MF – E o senhor Américo?
AL – Olho para trás e sei que era bom. Era corajoso, mergulhava aos pés dos avançados, metia a cabeça onde eles metiam as botas. Fui um dos melhores da minha geração, se calhar o melhor. Está a ver aqui este elogio do Di Stéfano [Américo mostra-nos a página de um jornal antigo]. Veja bem: ‘Américo é um dos melhores do mundo’. Fico orgulhoso. O Di Stéfano foi o melhor tipo que vi a jogar à bola.

Museu de Américo: em ação contra o Belenenses (foto: Ricardo J. Castro)

MF – Mas nem assim o Américo foi titular no Mundial de 1966.
AL – Nem me fale disso. Não quero parecer vaidoso, mas era muito superior ao Zé Pereira e ao Carvalho. Comigo na baliza, acho que Portugal podia ter sido campeão mundial. O selecionador Luz Afonso nunca me deu qualquer explicação, era de poucas palavras. E o Otto Glória… mandava pouco. Lá está, o ambiente na seleção era bom, mas os atletas do FC Porto ficavam sempre um bocado em segundo plano. Era a mentalidade da época.

MF – No FC Porto a relação com os treinadores era mais fácil?
AL – Depende. Com o Pedroto foi complicadíssima. Ele foi muito melhor jogador do que treinador.

MF – Os portistas adoram-no.
AL – Era um ditador na relação com o plantel. Já faleceu, não está aqui para se defender, mas ele sabe o que eu achava. Porque lhe disse. Eu era um dos mais velhos e fui ter com o Pedroto. ‘Fomos colegas de equipa, conheces-me bem e sabes que aturo tudo. Mas não admito que fales comigo dessa maneira em frente aos putos.’ Os putos eram os jogadores mais novos. O Pedroto tinha esse problema, um feitio irascível.

MF – Trabalhou também com o Béla Guttmann.
AL – Sim, fui campeão nacional com ele. Um homem bom, mas muito repetitivo no trabalho. Depois foi para o Benfica e impediu o Zé Augusto de vir para o FC Porto. Ele jogava no Barreirense, tinha as coisas apalavradas connosco e o Bella desviou-o para a Luz.

MF – O Benfica dominava o futebol português nessa altura. Como reagia o FC Porto?
AL – Como podia. Sabe, os banqueiros e os empresários não investiam no futebol, não permitiam que o clube tivesse as condições que merecia. E por isso houve o tal atraso em relação aos da capital. O resto era política. Até o Belenenses era mais protegido do que nós. Havia culpas próprias e culpas externas.

MF- Mesmo assim, o FC Porto teve boas equipas.
AL – Algumas boas, outras fracotas. Tivemos o Serafim e o Hernâni, grandes jogadores. E o Pavão, um rapaz muito calado, mas muito bom atleta. O Custódio Pinto, o Azumir. Ainda apanhei o Jaburu, um avançado enorme. Viciou-se no álcool, infelizmente. Certo dia bebeu álcool etílico à nossa frente. Connosco andava quase sempre na linha, o pior foi quando saiu do FC Porto.

Américo no seu museu privado: um Dragão de Ouro (foto: Ricardo J. Castro)

«Problemas na Luz nunca tive. Mas na Suíça levei com um guarda-chuva»

MF – Falemos mais um pouco do FC Porto-Benfica. Nunca teve problemas nas visitas à Luz?

AL – Nunca. Eu era um homem forte, não se metiam comigo (risos). O único problema que tive num estádio de futebol aconteceu na Suíça. Estava na baliza, enregelado – as camisolas eram de malha e com a chuva ficavam duras, coladas à pele – e um tipo invadiu o campo e agrediu-me com o guarda-chuva. Os suíços, já viu? Cavalheiros? O tanas. Ah, também tive um problema no Maracanã.

MF – Foi agredido no Brasil?  
AL – Não, não. Perdi-me dentro do estádio. Fiquei sozinho e não encontrava a saída. Aquilo era um monstro de cimento. Desorientei-me e andei quase uma hora a pedir ajuda.

MF – Os jogos internacionais deviam ser duros. Pelas viagens, principalmente.
AL – Entre o clube e a seleção… bem, eu passava semanas sem vir a casa. E aconteciam coisas muito tristes. Em Bordéus, veja bem, fomos eliminados por moeda ao ar, depois de uma grande exibição e um empate. E esta bola aqui, vê? [preta e amarela] Foi roubada a um árbitro. Na Alemanha. Quase que andei à bofetada com ele no fim do jogo para ficar com ela (risos).

MF – Vai ver o FC Porto-Benfica de sexta-feira?
AL – Sossegadinho no sofá, em frente à televisão. Vejo todos os jogos do meu Porto. Gosto desta equipa atual, mas contra o Aves a exibição foi muito má.

MF – E o José Sá, já o convenceu?
AL – Ainda não tenho uma opinião. Preciso de ver mais. Não gostei nada do que vi no início, mas tem melhorado. E no banco tem um mito. Um mito que me desiludiu.

MF – Ficou desiludido com o Iker Casillas?
AL – Um guarda-redes tem de mandar nas áreas. Tem de limpar isso tudo. Eu pensei que o Casillas fizesse isso, mas só é bom entre os postes. Esperava mais dele, sinceramente. Acho que este FC Porto precisa de um Américo (risos).

artigo atualizado: hora original 23:54, 30-11-2017