Quando era criança, perguntaram-lhe se queria jogar de azul ou vermelho. Optou pelo azul, mas não demorou muito até vestir a camisola encarnada. Custou-lhe deixar o colo dos pais aos 11 anos, mas foi no Seixal onde viveu a adolescência e algumas das experiências mais marcantes da carreira, ao lado de João Félix e outros nomes que vingaram no futebol internacional.
Apercebeu-se que a porta da equipa A dificilmente se abriria e teve um percurso conturbado até se fixar na Liga. Foi ao norte do país, coincidiu com Rui Borges na primeira experiência no banco do atual treinador do Sporting, festejou a conquista da Liga Revelação e, a partir daí, viveu anos com a calculadora nas mãos a fazer contas à luta pela manutenção, em clubes com a corda na garganta. Pelo meio, partilhou o relvado com craques como Kylian Mbappé e Neymar numa breve aventura em França.
Estava a fazer o melhor arranque de temporada da carreira no reencontro com Rui Borges, desta vez em Guimarães, mas decidiu voltar ao estrangeiro, para tentar a sorte noutro patamar. Atualmente luta pelo título na Rússia, com o Spartak, mas a experiência não está a correr totalmente como o esperado.
Ao Maisfutebol, Ricardo Mangas recorda que foi para o Benfica por insistência dos pais. Tornou-se bom amigo de João Félix e treinou com outros craques, como Rúben Dias ou Renato Sanches.
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PARTE III - «Não estava no meu melhor, mas Rui Borges acreditou em mim»
PARTE IV - «Estava no túnel ao lado do Neymar e ele com botas desapertadas como se fosse treinar»
PARTE V - «Tive problemas no Boavista... vejam os jogos e não as fotografias que eu publico»
Como é que um rapaz que nasce em Olhão vai para a Nazaré e, depois, volta para o Algarve?
Fui para a Nazaré, estudei lá e joguei nos Nazarenos. Joguei, não. Só treinava, porque nem era convocado. Depois a minha avó foi viver para o Algarve e os meus pais acompanharam-na. Aos nove anos, disse ao meu pai que queria tentar outra vez. Comecei com seis nos Nazarenos, mas como não jogava fiquei um bocadinho triste e desisti um pouco do futebol. Depois, cheguei ao complexo onde treinavam o Marítimo de Olhanense e o Olhanense. Na altura, não sabia a diferença e um senhor perguntou-me: “Queres jogar de vermelho e preto ou de azul?”. E eu disse: “Quero jogar de azul”. E pronto, fui jogar no Marítimo de Olhanense.
E depois acaba a jogar de vermelho.
Faço um ano no Marítimo de Olhanense e vou para o CFT do Algarve do Benfica. Havia um colega que já estavam a observar há algum tempo, que era o Marco Jesus. Foram ver um jogo, eu também joguei e joguei bem. Ia para a casa dele muitas vezes e, um dia, fomos almoçar ao restaurante dos pais dele. Estava lá o olheiro do Benfica que vinha falar com ele e com os pais dele e, como tinha visto o meu jogo e gostou de mim, disse que também queria falar com os meus pais. Para um miúdo de 9/10 anos saber que o Benfica queria contar comigo… podes perceber a felicidade. Fiz dois anos no CFT e fui um dos escolhidos para ir para o Seixal. Disse que não queria ir, não queria ficar longe dos meus pais. Os meus pais disseram-me para ir e, se no final dos primeiros dias não quisesse estar lá, vinham-me buscar. Fui para uma realidade completamente diferente da minha. Adaptei-me, não foi fácil, mas correu tudo bem.
Era fácil viver no Seixal?
Era fácil porque não faltava nada. É um luxo para os miúdos de 11/12 anos poderem ter a vida que eu tive. Sei disso e sou grato ao Benfica por me ter dado essas condições todas.
Não fez nenhuma asneira durante esse período?
Tenho algumas (risos).
Pode contar?
A Telepizza tinha as quartas-feiras loucas e nós tínhamos a ementa da semana. Se não gostássemos da comida, se fosse um peixinho, fazíamos uma chamada e encomendávamos umas oito pizzas diferentes. Depois, íamos às escondidas, por volta das 23h00, quando os seguranças faziam a ronda e as luzes estavam apagadas, pela parte de trás do Benfica Campus. Havia lá uma parte das grades que já tínhamos combinado com o estafeta e correu sempre tudo bem.
Com quem andava sempre nessa altura?
Com o Ricardo Araújo [Jorginho], depois veio o Nuca, Nuno Santos, David Carmo. Quando já éramos os mais velhos, veio o [João] Félix. Era como se fôssemos unha com carne, praticamente melhores amigos.
Ele é da geração de 1999, como o Jota e Gedson, por exemplo.
Exato. O Félix chegou nessa altura. No ano a seguir, eu era júnior, aluguei uma casa e o Félix vivia no centro de estágios, mas não me largava. Andava comigo a toda a hora na minha casa. Tínhamos uma ótima relação.
Todos aqueles que jogaram com ele na formação dizem que se destacava, que era diferente dos outros. Mas o que é isso de ser diferente?
Fazia coisas… Ele fazia uma coisa, tu tentavas replicar as vezes que quisesses, mas nele saía com uma naturalidade que não consigo explicar. E ele tinha uma relação com o golo em miúdo – e ainda tem – que é… o João consegue fazer um golo caído do céu. É um predestinado, como se costuma dizer. Têm um toque diferente com a bola. O João sempre foi assim desde que chegou ao Benfica Campus, apesar de ter evoluído muito do primeiro para o segundo ano. Dizia-lhe na altura, quando as coisas não corriam bem: “É só fazeres o teu golo que, no final da semana, vai aparecer golo e o teu nome. No futuro, isso vai fazer muita diferença. Falam é de quem faz golos”. E ele na formação fazia bastantes golos.
O Félix faz 26 anos em novembro. Acha que ainda vai a tempo de chegar àquele patamar que muitos viam nessa altura e quando ele saiu do Benfica?
Vou defender isto até sempre, pode acontecer ou não. Olho para o João e vejo uma pessoa que tem talento para ganhar a Bola de Ouro. Se vai conseguir chegar a esse nível… depende dele. Tem muito para trabalhar. Mas ninguém pode negar que o talento que ele tem é uma coisa absurda.
Também jogou com o Rúben Dias, que é um ano mais velho.
Eu era iniciado B e treinava muitas vezes com os iniciados A. O treinador era o Luís Nascimento, que gostava muito de mim e eu gosto muito dele. É adjunto do [Bruno] Lage.
Algum jogador surpreendeu por ter chegado ao topo?
O Rúben Dias já era este patrão, já falava muito. O Renato [Sanches] também era uma coisa surreal de se ver pela força, pela capacidade física que tinha para a idade dele na altura.