Tó Madeira. Um nome que tem tanto de desconhecido como de mítico. Ninguém conhece a cara deste 'futebolista' português que deixou grandes memórias aos jogadores de Championship Manager 01/02, numa fase embrionária do videojogo que evoluiu para Football Manager (e que está prestes a entrar noutra fase de viragem).
Um desses jogadores era o humorista Luís Franco-Bastos que, com «11/12 anos», foi introduzido a esse mundo por um primo mais velho. Ao ver a série 'The Last Dance' em 2020, focada numa superequipa de basquetebol dos Chicago Bulls, teve uma ideia – fazer um trabalho à volta desse temido avançado que iniciava o 'save' no Gouveia, mas acabava sempre como lenda.
Em entrevista ao Maisfutebol, Luís Franco-Bastos explica o processo de criação da série que será lançada no dia três de novembro no YouTube (em três partes), abordando os principais desafios e o imaginário de uma era prematura dos videojogos, sem fugir a uma comparação: o Tó Madeira da atualidade é Viktor Gyökeres. «Marca de onde quer que seja, como quer que seja, e não precisa sequer de muito espaço».
No fundo, o humorista encara o projeto como uma «homenagem» pessoal a um desporto que gosta muito: «É uma espécie de hino ao futebol em três episódios». E admite mais no futuro.
MF: Vou começar por uma pergunta mais óbvia e abrangente - como é que surgiu a ideia?
LFB: A ideia, na verdade, tem algum tempo. Surgiu-me ainda durante a pandemia, depois de acompanhar a série 'The Last Dance', do Michael Jordan. Penso que tenha sido uma das chaves para o recomeçar deste boom dos documentários desportivos. Na altura, saíam novos episódios religiosamente à segunda-feira. Eu estava a fazer rádio, acabava o programa que fazia a partir de casa, tomava o pequeno-almoço e via o episódio que tinha saído. Esse estímulo levou-me depois para fazer uma transposição para o imaginário do futebol, até que me ocorreu: e se houvesse um 'The Last Dance', mas relacionado com o Tó Madeira? Que é um jogador cuja origem é desconhecida para a grande maioria do público. Um jogador ou uma pessoa, porque lá está, é aquela dualidade que este documentário tenta explicar. Vamos tentar compreender as suas origens e desvendar a sua identidade de uma forma mais conclusiva.
E quanto tempo levou até poderes lançar esta série?
Fui maturando a ideia durante algum tempo e, salvo erro desde inícios de 2024, janeiro, ou fevereiro, chegámos à conclusão de que a Betclic podia ser o parceiro certo para isto. Apresentámos o projeto e eles, desde o primeiro momento, acreditaram muito na ideia. Antes de começar a filmar, houve muita preparação, muita pesquisa, preparação dos guiões. Os documentários também têm guiões, mesmo que estejam a cobrir uma série de acontecimentos verdadeiros ou a ter conversas verdadeiras com pessoas. Foi um longo período de preparação e a rodagem começou já no ano passado, portanto tivemos um ano em preparação. Pelo meio fui aos Estados Unidos assistir ao Mundial de Clubes. Estivemos perto de dois anos a trabalhar no projeto, até ele sair para o público poder ver, que é algo que nos deixa a todos muito contentes e para mim é um grande alívio. Ainda antes de falar contigo estive a ver o primeiro episódio outra vez e estou desejoso que chegue o dia em que eu não tenha que ver mais isto, com todo respeito pelo meu próprio projeto [risos].
Quando se entra no trabalho de pós-produção, revê-se o trabalho demasiadas vezes.
O que eu agora quero ver, honestamente, é a satisfação na cara das outras pessoas. Tanto para quem o Tó Madeira e o Championship Manager significam e significaram muito e quero, se possível, vê-las contentes e satisfeitas, entusiasmadas com o projeto.
Na esmagadora maioria dos momentos eu estava basicamente à solta, a interagir com pessoas. E isso tem consequências"
Ao longo da realização desta série, surgiram desafios inesperados?
Vou excluir aquelas questões típicas de qualquer projeto. Há sempre uma outra dificuldade mais técnica, uma outra contrariedade do ponto de vista de produção, a gestão do orçamento, porque por maior ou menor que seja, o orçamento é sempre difícil de gerir. Talvez uma das grandes dificuldades tenha sido tentar desenterrar e compreender um assunto que já tem tanto tempo. Estamos a falar de uma altura em que não tinhas a mesma quantidade de informação, nem a informação que havia na altura ficava registada de uma forma tão fácil de aceder depois como hoje. Às vezes perdem-se pontes de contacto com pessoas e depois tu percebes que estás sem saída e tens de descobrir outra maneira de chegar a quem queres chegar. Todos os projetos onde não dependes só de ti próprio e de uma câmara, precisas de outras pessoas e precisas de outras entidades, tens esses obstáculos.
Dirias que o estilo desta série será mais documental ou ‘mockumentary’?
Eu acho que ambos os estilos inevitavelmente se fundem. Para já, é óbvio que a partir do momento em que eu estou no projeto, as pessoas sabem que isto não é jornalístico. Eu não sou jornalista, isto não vai ter a seriedade de um jornalista. E em muitos momentos, ou até na esmagadora maioria dos momentos, eu estava basicamente à solta, a interagir com pessoas, num ambiente mais formal ou menos formal. E eu a interagir com pessoas tem sempre consequências [risos]. Nós quisemos contar uma história e retratar uma história e um percurso, uma série de factos que nós queríamos perceber melhor, da forma mais clara e fidedigna possível. Mas também tínhamos, obviamente, a preocupação de que isto fosse divertido e entertaining de ver. É uma peça televisiva, neste caso é para a internet, mas isto é como se fosse televisão. Não é que tenhamos desatado a romancear tudo e mais alguma coisa, mas tivemos sempre em consideração que isto tinha de ter um embrulho divertido.
Pergunto isto até pelas pessoas que aparecem no teaser, algumas figuras ilustres do futebol. Ao que parece, o Tó Madeira é comum a todas elas também?
Nós quisemos, para além das pessoas que fomos encontrando mais relacionadas com a questão a fundo, por exemplo o presidente do Gouveia, o Dr. Alberto Cardoso, a quem eu mando um abraço pela grande generosidade na forma como colaborou neste documentário. Achámos que era importante ter caras que o público conhecesse e que tivessem vivido a situação da mesma forma que nós, para mostrar que isto era uma coisa que dizia muito a uma série de gente. Não só a nós e às pessoas de Gouveia. O público conhece-os e então sente-se representado por eles. O Maniche, que dispensa de qualquer tipo de apresentação, o Luís Freitas Lobo, a Sofia Oliveira, o Blessing Lumueno, o André Pinheiro, que é meu colega e amigo no Prata da Casa, o grande Ric Fazeres… espero não esquecer-me de ninguém, mas eles servem para não só contribuir com o seu conhecimento e com a sua perspetiva dos acontecimentos, que é o que já fazem profissionalmente, mas também para representar o espetador, espero eu.
Com 200 mil euros, ou qualquer coisa do género, tinhas um jogador que depois acabaria no Real Madrid e marcava 40 golos num ano"
Há aqui outra pergunta essencial. Tiveste o Tó Madeira no CM?
Tive. Foi numa fase muito inicial, eu era bastante novo quando comecei a jogar CM, eu penso que tinha 11 ou 12 anos. Era relativamente novo para o target do jogo, mas já era o suficiente para querer jogar. E eu jogava muito, aliás isso é explicado no documentário, eu comecei a jogar por influência do meu primo João. Eu tenho dois primos direitos homens e o meu primo João, ao contrário de mim, tem uma profissão, portanto não vai aparecer no documentário [risos]. O meu primo Gonçalo conseguiu arranjar um espacinho na vida profissional dele e aparece no documentário. O meu primo João é três anos mais velho do que eu e foi ele que nos pôs a jogar aos três.
Que recordações é que tens dele?
Lembro-me da grande relação custo-benefício que o Tó Madeira tinha, era uma contratação que, olhando para o nome era meio ‘fora’, mas que era obrigatória, porque sabias que com 200 mil euros, ou qualquer coisa do género, tinhas um jogador que depois acabaria no Real Madrid e marcava 40 golos num ano. Quem é que não quer isso?
Na atualidade, com a profissionalização que o FM teve, achas que é impossível haver outro caso igual ao Tó Madeira?
Eu acho que sim. Acho que era uma das vantagens, digamos assim, de não haver tanta informação e de não haver tanta conexão entre todas as pessoas, todas as empresas, todas as entidades, era possível acontecerem magias destas. Acho que a ausência de tecnologia e os períodos menos evoluídos em certos aspetos têm essa desvantagem, mas depois permitem outras coisas. É um bocado como quando não tínhamos telemóveis e não podíamos falar com as pessoas a toda a hora, mas isso também tinha a sua magia, porque depois quando recebias um telefonema era de facto entusiasmante. Atualmente, recebes um telefonema e o mais provável é rejeitá-lo. Só mesmo esses outros tempos é que permitiriam se calhar um fenómeno como este acontecer.
Até por não have a parte visual do jogo. Tinha de se imaginar o Tó Madeira pois não havia fotografias dos jogadores.
Exatamente. Isso foi uma coisa que depois na verdade se manteve até tarde. Eu não tenho a certeza de como é que o jogo está agora, porque confesso que as edições dos últimos anos não as joguei, mas eu lembro-me mesmo mais à frente não havia cara. O jogo que eu joguei mais de todos acabou por ser o FM 2005 ou 2006, no qual eu cheguei a fazer mais do que 12 épocas consecutivas. Podias conhecer alguns, mas no jogo tu não vias a cara. Portanto, imaginavas. Aconteceu com o Tó Madeira, que foi um fenómeno mais específico, mas foi acontecendo ao longo do tempo. Só mais tarde é que muitas pessoas tiveram noção de como é que era a cara do Leo Lima, que jogou no Porto, ou do Celsinho, que jogou no Sporting. E tanto um como outro garantidamente foram escolhidos por causa do FM e não por causa da realidade [risos].
Leo Lima (ex-FC Porto) e Celsinho (ex-Sporting) foram garantidamente escolhidos por causa do FM e não por causa da realidade"
Além do Tó Madeira, chegaste a jogar com o Maxim Tsygalko ou o Cherno Samba?
Não tenho a certeza absoluta. Lembro-me de jogar com um amigo meu com outro jogador que também ficou muito marcado, que era o [Isaac] Okoronkwo. Okoronkwo, Tó Madeira, Tsygalko, tenho quase a certeza que sim.
Havia um guarda-redes chamado Hugo Pinheiro, também.
Eu não tive, acho que não tive. Lembro-me do meu amigo Gonçalo Vasconcelos ter esse guarda-redes, por exemplo. São coisas que ficam. Lembro-me de jogar com ele no quarto dele, na casa dele, com paredes em madeira. Ficas com estas memórias visuais, não é?
Quando surgiu a ideia, quiseste encontrar o Tó Madeira ou o criador do Tó Madeira?
Não posso responder a 100 por cento a essa pergunta, porque estaria a ‘spoilar’ depois o que é que acontece no documentário, mas posso dizer que o principal objetivo era encontrar o verdadeiro Tó Madeira, quem quer que ele fosse, jogador ou não. E depois viver com as consequências daquilo que encontrássemos, sim.
Se o Tó Madeira fosse um jogador da atualidade, olhando para as estatísticas dele, quem seria?
Eu acho que ele seria uma espécie de... ia dizer Haaland, mas sou capaz de escolher Gyökeres. Uma das características dele era marcar de onde quer que fosse, como quer que fosse e de não precisar sequer de muito espaço ou de não precisar de estar perto da baliza. Entregavas-lhe a bola e acabava lá dentro. E o Gyökeres, a quem eu agradeço imenso por ter ido para a Inglaterra, é esse jogador. Claro que haveria certamente diferenças, mas acho que é um bom exemplo. Um avançado completo, sinónimo de golo.
Chegando a uma parte mais final desta entrevista, achas que este tipo de conteúdos com uma produção mais aprofundada, no YouTube, é algo a explorar cada vez mais pelos humoristas em Portugal?
Eu acho que sim. Eu acho que temos um mercado bastante específico, não só o nosso mercado de humor, mas o nosso mercado de entretenimento. E eu acho que é muito importante nós tentarmos sempre conseguir extrair o melhor que podemos dentro das características do nosso mercado. E eu acho que este tipo de séries independentes, mas com um parceiro estratégico que permite viabilizar financeiramente o conteúdo, com a independência criativa da internet, é um dos caminhos mais interessantes, se não o mais. Temos de jogar ali naquela dualidade. Estamos no YouTube, mas estamos a fazer uma série. Não é um vlog...
Algo que poderia dar na televisão.
Exatamente. Uma série que poderia estar na televisão, eventualmente, mas que tenta fazê-lo no YouTube com a liberdade do YouTube. Acho que esso é o caminho e aqui tenho que deixar um grande obrigado e um grande respeito à Betclic porque acreditou muito no projeto, deu-nos uma liberdade que não é... Atrevo-me a dizer que não é normal. Olhando para o meu percurso, de facto trabalhei com marcas muito poucas vezes porque, justamente, fui acreditando que era possível encontrar alguém que compreendesse a importância dessa liberdade e que o conteúdo sairá melhor quanto mais deixarem o autor trabalhar. Essa minha espera foi recompensada.
O meu editor-chefe chamou-me a atenção para o facto de tu, em 2009, teres tido uma das primeiras aparições públicas no Maisfutebol, com uma imitação do Ronaldo.
Porque terá sido uma imitação do Ronaldo? Era uma coisa que eu fazia tão pouco na altura... [risos]. Eu tinha a certeza que já tinha colaborado com o Maisfutebol de alguma forma, não sabia que tinha acontecido numa fase tão inicial. É engraçado.
De 2009 para cá, como tem sido a evolução enquanto humorista e enquanto pessoa?
Acho que tem sido positiva. A minha carreira começou no final de 2007 e só arrancou a fundo em 2008. Portanto, em 2009 eu estava mesmo super no início. Passou bastante tempo. Este ano faz 18 anos que comecei. Acho que na altura eu ainda estava um bocadinho à procura da minha voz, por assim dizer. E até literalmente à procura da minha voz. Acho que atualmente já sei melhor qual é. Talvez uma das principais diferenças é que no início eu era... não vou dizer prisioneiro, mas eu estava 100 por cento focado na parte das imitações. E hoje acho que elas continuam presentes de diversas maneiras, tanto no stand-up, como nas conversas em podcast que tenho. Mas o facto de eu ter explorado outros caminhos em paralelo permitiu, por exemplo, que hoje apareçam projetos como este. Se bem que posso desvendar que acontece a dada altura de uma imitação durante o documentário. Pronto, posso revelar esta [risos]. Vão é ter de esperar pelo terceiro episódio para ouvir. Aproveito não só vender o peixe, como expliquei que as pessoas têm...
De esperar pelo terceiro episódio e não no primeiro.
Exato, não ia gastar logo esse trunfo [risos]. Acho que essa é uma das principais diferenças. Eu tive tempo, que é uma coisa que às vezes os artistas não têm. Porque têm uma necessidade mais imediata de sucesso. Ou têm uma ânsia de afirmação, se calhar, um bocadinho mais acelerada. Eu acabei por ter tempo. Eu tive sempre a possibilidade de ir trabalhando. E tive tempo para encontrar a minha voz. Hoje quero acreditar que consegui chegar a um bom mix de todas as coisas que eu queria fazer e vou tentando fazer todas.
Acredito que o futebol e este imaginário poderá continuar no meu horizonte, no meu futuro próximo"
Uma última pergunta, em jeito de desafio - suponho que tenhas encontrado o Tó Madeira. Quem é que vais encontrar a seguir na próxima série?
Não confirmo nem desminto se encontrei. É curioso porque já pensei nisso. Não te sei dizer. Talvez seja um caminho que eu eventualmente gostasse de explorar. Posso dizer que até pode já me pode ter ocorrido um nome ou outro. Mas não vou correr o risco de depois querer mesmo fazer isso e eventualmente ‘spoilar’. Sei que não estou a dar grande resposta à tua pergunta, porque fico assim um bocadinho de mãos atadas.
Mas podes dizer o setor da sociedade dessa pessoa, por exemplo.
O que eu acho que posso dizer com 100 por cento de certeza é que, mesmo ainda não tendo este projeto saído no momento, estou a sentir que as pessoas notam quando fazemos um projeto à volta de uma coisa de que gostamos mesmo. Eu acho que esse é o caminho e, portanto, eu acredito que o futebol e este imaginário poderá continuar no meu horizonte, no meu futuro próximo. Porque é bom explorarmos uma coisa que gostamos e acho que este projeto até acabou por ganhar isso. Este projeto, para além do objetivo específico que tinha em mente, acaba por ser também a minha homenagem possível a um desporto que eu gosto muito. É uma espécie de hino ao futebol em três episódios. E isso dá-lhe um significado mais profundo que me deixa feliz. Acho que o caminho pode ser por aí.
A sua revista digital