Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Foi um arranque aos soluços.

Uma falsa partida. Avanços. Recuos.

Mais um empurrãozinho.

E agora é que vai.

Após algumas semanas de tentativas para conciliar agendas, o Maisfutebol conseguiu, finalmente, conversar com Miguel Oliveira.

A primeira tentativa foi feita em vésperas do arranque oficial do Campeonato do Mundo de Moto GP, mas foi abaixo logo no arranque.

Contudo, depois do cancelamento desse Grande Prémio do Qatar e de sucessivos adiamentos da primeira prova, o primeiro piloto português a chegar ao Moto GP alinhou na grelha de partida para esta conversa com o nosso jornal e foi sempre a abrir.

Miguel Oliveira olhou para a época de estreia, na qual ficou no 17.º lugar, tendo como melhor resultado o 8.º lugar no GP de Áustria; analisou as consequências dos sucessivos adiamentos devido à pandemia da Covid-19; e, claro, apontou baterias à nova época, a segunda a correr pela Red Bull KTM Tech 3.

E seja qual for o tema, Miguel Oliveira não hesita: vai prego a fundo. Sobretudo quando o tema é ambição.

Segue sempre de roda no ar.

Maisfutebol: Para alguém apaixonado pelas motas desde os três anos, como foi o sentimento de chegar ao topo do motociclismo com a entrada no Moto GP. Ao ‘palco dos sonhos’, como lhe chamou?

Miguel Oliveira: A sensação da primeira corrida foi especial, claro. Toda aquela sensação de desconhecimento e do cumprir de um sonho. É quase como estrear na Liga dos Campeões [risos]. O impacto daquilo ser real, ser algo com que sonhei e depois estava lá. Apesar da transição ter sido muito gradual e em crescendo, o momento de estreia acaba sempre por ser marcante porque é quando o sonho passa à realidade. Foi isso que senti no ano passado no Qatar. Estava um bocadinho mais nervoso do que é habitual, mas é um sentimento transversal a todos os pilotos.

MF: Que balanço que faz da primeira época a correr no Moto GP?

Miguel Oliveira: O meu balanço é simples: foi bom, mas podia ter sido bastante melhor [risos]. Sinto que evoluí bastante ao longo de todas as corridas, mas os resultados poderiam ter sido melhores em algumas ocasiões. No geral, deixou um sabor um pouco agridoce.

MF: Pela forma como acabou?

Miguel Oliveira: Sim. Acabei por me lesionar numa queda que resultou da colisão com outro piloto, da qual eu não tive culpa. Contraí uma lesão muito chata que se arrastou por algumas corridas. Sacrifiquei os meus resultados e acabei por não fazer aquilo que realmente poderia fazer em cima da mota, devido à lesão.

MF: E não participou nas últimas três corridas do campeonato.

Miguel Oliveira: Exato. Foi uma época dura psicologicamente. Aprendi muito, mas psicologicamente foi duro aguentar tudo isto, na época de estreia. Mas acho que foi uma época boa para aprender e tornar-me mais forte psicologicamente para afrontar uma nova época.

MF: Pontuar em nove das 16 corridas que fez é um bom sinal?

Miguel Oliveira: Sim, quase metade. É certo que quatro das provas já foram com lesão e acabei por pontuar em duas dessas. Enfim, poderia ter sido melhor, mas estou feliz. Acho que fiz uma época muito boa para as condições.

MF: Numa equipa nova também.

Miguel Oliveira: Sim. Fui para uma equipa muito boa, que tinha um construtor novo, a KTM. A Tech3 é uma estrutura que correu muitos anos com Yamaha e de repente mudou para a KTM e também teve de fazer uma adaptação. E tudo isso não foi fácil. Daí, dizer que foi uma época de aprendizagem, não só para mim, mas também para a estrutura e até o construtor. Foi uma mão cheia de coisas que tornaram a época numa grande aprendizagem.

MF: Sente que o 17.º lugar, com 33 pontos, acabou por saber a pouco?

Miguel Oliveira: Sim. Eu quero sempre mais e não me revejo num 17.º lugar. Sei reconhecer o valor que isso tem e retirar as partes positivas, mas sei que consigo fazer muito melhor. Sei também que o resultado que ambiciono chegará, com muito trabalho. Por isso, considero que foi uma época de aprendizagem, na qual a classificação final não foi o mais importante.

MF: Olhando para a nova época, tendo em conta que estava ainda a recuperar da lesão, o adiamento do início do Mundial tem algo de positivo?

Miguel Oliveira: Não sei. No que diz respeito à lesão, sinto-me muito bem. E acho que talvez a recuperação fosse mais rápida se fosse feita em cima da mota, porque são esses os movimentos que eu trabalho. Não considero que tenha algo que me prejudique ou beneficie. Foi igual para todos, ninguém está a correr. Mas é melhor começar o campeonato a 100 por cento fisicamente do que se estivesse a 80, por isso não me posso queixar muito.

MF: Mas já está totalmente recuperado da lesão no ombro?

Miguel Oliveira: Falta-me andar de mota para perceber, mas acho que sim. Não sinto qualquer desconforto, sinto-me bem, por isso acho que o ombro não seria motivo para não fazer bons resultados.

MF: Como está a ser a experiência de fazer a preparação afastado da pista?

Miguel Oliveira: No início foi um pouco frustrante. Porque estava, literalmente, de malas feitas para apanhar o voo [para o Qatar] e quando soube que o Grande Prémio iria ser cancelado, foi um grande balde de água fria. É como estudar para um exame e ele ser cancelado. Toda aquela preparação física e psicológica que fazemos durante a pré-época vai por água abaixo.

MF: Mas já não sente essa frustração?

Miguel Oliveira: Rapidamente esse sentimento acabou por ser substituído por outro. Apercebi-me dos efeitos catastróficos que o vírus estava a ter na nossa sociedade em todo o mundo e a frustração acabou por desaparecer. E fez-me compreender e aceitar o facto de não estar a competir. Porque nenhum desporto está a decorrer neste momento. É sensato dizer que não me sinto chateado por não estar a competir. Claro que gostaria que a competição fosse realizada ainda este ano - acho que nós, pilotos, merecemos e os fãs também. E voltarmos a fazer a nossa vida normal seria um sinal positivo, como que uma luz ao fundo do túnel para sairmos deste pesadelo.

MF: Concorda, então, que a suspensão do campeonato foi decisão correta?

Miguel Oliveira: Claro que sim. Nem se coloca essa questão. Quando se está a combater um vírus e a sua disseminação, não podemos estar a pensar em juntar as pessoas para ver um desporto. Isso não ajudaria nada. A decisão tomada foi a única que poderia acontecer.

MF: Entretanto houve uma prova virtual contra outros pilotos [Miguel foi oitavo, em dez participantes] e já percebeu que as corridas virtuais não são a sua praia?

Miguel Oliveira: Não são a minha praia porque eu não treinei. Nem sabia o que era uma Playstation 4 [risos]. Por isso, se me derem oportunidade de correr outra vez, vou demonstrar melhores resultados também nas corridas virtuais. Mas não é o meu forte, não.

MF: Mas já esteve a treinar para mostrar resultados?

Miguel Oliveira: Agora, sim. Tive de arranjar uma Playstation e já tenho treinado um bocadinho.

MF: Sempre vai dando para atenuar a falta das corridas. Já têm alguma indicação de quando poderá começar?

Miguel Oliveira: Não temos nada. O GP da Catalunha também já foi adiado. Calculo que em junho também não haverá atividade, por isso, no melhor das hipóteses pensaremos voltar em julho ou agosto. Mas eu não sou o organizador. E acredito que quem faz o calendário terá grandes dificuldades em traçar um plano. Porque, neste momento, todos estão à espera das medidas que cada país irá adotar quando isto tudo passar. Se isto passar. Pensar em fazer um calendário nesta altura será inútil, sem saber tudo isto antes.

MF: Como piloto sente que há algum cuidado particular que se terá de ter ao delinear o calendário?

Miguel Oliveira: Uma vez que o calendário deverá ser apertado, com muitas provas em menos tempo, terá de se garantir que é possível realizá-las, em termos logísticos. Será um calendário mais exigente em termos físicos, porque terá mais provas em menos tempo, mas temos de estar preparados para isso.

MF: E qual é o objetivo traçado para esta época?

Miguel Oliveira: Antes disto tudo, o meu objetivo era lutar por estar nos dez primeiros lugares. E continua a ser esse o objetivo. Só é preciso que a época comece [risos].

MF: Este adiamento pode ter consequências em termos competitivos?

Miguel Oliveira: Isto alterou tudo um pouco. Há rivais que se calhar não vão estar tão bem preparados, mas haverá outros que estarão melhor. Nós temos uma mota nova, precisamos de tempo com ela, precisamos de a testar, por isso, quanto mais tempo estivermos parados, pior é para nós. Porque não temos muita informação sobre a mota. Vamos ter de trabalhar o dobro e com o dobro da eficiência para sermos competitivos a cada Grande Prémio.

MF: Acredita que a mota dá garantias para lutar pelos dez primeiros lugares?

Miguel Oliveira: No desporto motorizado nada é garantido. O que sei é que a KTM deu o seu melhor e eu também vou fazer o meu para que isso seja possível.

MF: A experiência acumulada na primeira época será mais importante em que aspetos?

Miguel Oliveira: Acho que todas as segundas épocas são muito melhores que a de estreia. [Na primeira] Há muitas corridas em que decidimos com base no instinto, do que sentimos que é melhor, mas sem ter essa experiência. Só o facto de ir para as corridas sabendo aquilo pode acontecer e antecipar algumas coisas, já é uma vantagem. Sinto-me mais preparado. É essa a vantagem que um segundo ano nos dá.

MF: Sente que ser um português no Moto GP é uma dificuldade acrescida?

Miguel Oliveira: Acho que a única dificuldade que encontro está em negociar. Porque não temos um mercado tão grande para competir com mercados como a França, Espanha ou Itália, que faturam muito no mercado das duas rodas. O nosso mercado está a crescer muito, ainda não estamos ao nível desses países, mas estamos a caminhar para perto disso. De resto, sou visto como outro piloto qualquer.

MF: «Tenho a certeza de que vou ser campeão do mundo». Mantém a convicção da frase que proferiu há cerca de dois anos, antes da estreia no Moto GP?

Miguel Oliveira: Sim, mantenho. Caso contrário não valia a pena estar a trabalhar no Moto GP. Quando fazemos algo, há que fazê-lo bem. O melhor que se pode fazer no Moto GP é ser campeão do Mundo. Esse é o auge e eu quero alcançar esse objetivo o mais cedo possível. Ganhar corridas e estar no pódio é o primeiro passo para pensar em ganhar o campeonato. Eu não tenho essa experiência de ganhar corridas, mas tenho de a criar. Tenho de trabalhar para criar a minha oportunidade para ir aos pódios e lutar por vitórias, para depois pensar no título.