Afastado do futebol desde 2020, José Carvalho Araújo foi treinador do Sp. Braga nas camadas jovens, entre 2009 e 2020, com apenas uma época de interregno. Trabalhou com jovens como Francisco Trincão, David Carmo, Pedro Neto, Vitinha ou Francisco Moura, mas agora outros dois antigos pupilos estão ainda mais em voga – Ricardo Velho e Samuel Costa.

Com dois anos de diferença, Velho e Samuel Costa têm em comum um passado nas equipas de formação dos bracarenses (também ambos se afirmaram apenas fora do clube). Chegaram até a cruzar-se no mesmo balneário, quando um muito jovem Samuel Costa saltou etapas e ascendeu à equipa sub-19 do Sp. Braga, com apenas 17 anos. No entanto, nunca partilharam o relvado num jogo oficial.

Ambos ocuparam o banco de suplentes diante do Benfica, em 2017, numa vitória sobre os encarnados na Pedreira, por 3-0 (um jogo que não saiu da memória de José Carvalho Araújo, por boas razões). Samu disputou os últimos quatro minutos e Ricardo Velho ficou no banco.

Em 2024, sete anos depois, reencontram-se no relvado da Cidade do Futebol, casa das Seleções Nacionais de futebol, e podem finalmente partilhar o relvado em jogos oficiais. Isto, caso Roberto Martínez seja ‘generoso’ diante da Polónia ou da Escócia, na Liga das Nações.

Hoje dedicado à vida de empresário no ramo da arquitetura e design, em Braga, José Carvalho Araújo testemunhou a ascensão dos dois atletas na formação dos arsenalistas e revela «muito orgulho» de ter contribuído «numa pequena parte» do sucesso destes jogadores, recordando que tudo fez parte de um processo coletivo. A verdade é que, a dada altura, Araújo acreditou nos dois atletas e projetou-os a outro patamar.

«Há percursos muito bonitos, muito lineares, em que o jogador, por si só, começa e rapidamente chega aos pontos mais altos da carreira. E há outros que têm estes percursos mais sinuosos, mas que, se calhar, no final, têm um sabor ainda mais intenso, porque quando chegam lá é mesmo a pulso», refere Araújo em entrevista ao Maisfutebol.

«Nem sempre o mérito está associado a jogar ou a não jogar. Há toda uma série de circunstâncias. Mas a capacidade deles de não desistirem e continuarem a trabalhar e a lutar, acreditando que estão sempre a trabalhar para um bem maior, como foi a evolução deles, como atletas e como pessoa, é que os faz chegar a determinados patamares», completa.

Humildade de Ricardo Velho: «Mister, quero agradecer a oportunidade de jogar»

E, realmente, o caso de Ricardo Velho é paradigmático dessa persistência. Nas sete épocas que passou em Braga, nem sempre foi titular. Em 2017/18, por exemplo, fez apenas dois jogos na equipa B, depois de ter-se evidenciado com José Carvalho Araújo no escalão de juniores.

«Lembro-me que o Ricardo Velho tinha um jogador na sua posição, que era o Tiago Pereira, em quem o Braga depositava mais expectativas, significativamente, na altura. Lá está, pela questão do perfil, pela questão de envergadura, altura, pela questão física só. Hoje, o Ricardo Velho é uma prova viva de que isso, por si só, não é suficiente, e que ele consegue superar essa diferença de poucos centímetros [n.d.r. mede 1,88m]», recorda. Tiago Pereira é atualmente atleta do Oriental.

No final dessa temporada mais complicada, Carvalho Araújo, que orientava os juniores, convocou Ricardo Velho para um torneio sub-19 na Suíça. «Na altura podíamos levar três jogadores seniores de primeiro ano. Levámos o Kiki [Silva], o Midana [Sambú] e o Ricardo Velho. Estávamos com receio de que eles se sentissem fragilizados por descer de escalão», confessa.

Mas aconteceu o contrário. «A reação dos três, mas em primeiro lugar do Ricardo, foi dizer: ‘Mister, quero agradecer a oportunidade de jogar, que é aquilo que gostamos, porque realmente não estávamos a ter a oportunidade’. E esta é a forma de estar que realmente os faz projetar», atira o ex-treinador.

Mas antes disso, em 2016/17, Ricardo Velho foi um dos esteios da equipa de juniores que disputou o campeonato nacional, conseguindo um segundo lugar na zona Norte. «Safou-nos muitas vezes», recorda Araújo, que destaca ainda mais a prestação de Velho no escalão sub-23, na época de estreia da Liga Revelação, também sob o seu comando.

«Esse ano de 2018/19 foi interessantíssimo. Um dos grandes trabalhos que fizemos foi melhorar o seu jogo de pés. Queríamos que ele evoluísse, queríamos que ele participasse, no modelo de jogo do Braga. Ele não era tão confortável nesse capítulo, mas queria fazer, queria treinar, queria investir, queria conseguir melhorar», recorda Carvalho Araújo.

E deixa elogios à mentalidade do guarda-redes. «Sempre demonstrou esta perseverança, humildade e capacidade de trabalho. Tem uma grande inteligência emocional, capacidade de trabalho, de superação e de resiliência. Foi o que o fez sair de Braga para um projeto diferente como um Farense. Arriscou a sua sorte, procurando um espaço onde pudesse jogar mais, e a verdade é que encontrou», com paciência à mistura.

Ricardo Velho só se tornou indiscutível na segunda metade de 2022/2023, três anos depois de chegar ao clube. Na época passada destacou-se e agora é um dos capitães de um Farense que atravessa ‘as passas do Algarve’ para garantir a manutenção.

«Mostrou o potencial que tinha e que tem. Hoje chegou a recompensa de ser reconhecido como o melhor guarda-redes da Liga na época passada e uma chamada à Seleção. Acho que é justo. Se me perguntasse se era previsível, se calhar dado o percurso que ele foi tendo no Braga, não seria assim tão previsível embora a qualidade estivesse lá. Ainda bem que foi um apenas caminho para chegar ao sucesso», culmina o antigo treinador.

Samu Costa, um 'cavalo selvagem' que queimou etapas na formação

Como já referimos, outro dos ‘diamantes em bruto’ que passaram pela mão de José Carvalho Araújo é Samuel Costa. Ou melhor: Samú, como normalmente é referido em Espanha, onde tem vindo a mostrar o seu talento. Este, foi orientado duas vezes pelo ex-técnico bracarense, após algumas chamadas esporádicas a patamares superiores, Samuel jogou 20 vezes nos juniores, em 2017/18 e 12 vezes nos sub-23, em 2019/20.

Filho do antigo internacional sub-21 português Zé Maria (com quem o Maisfutebol falou, em reportagem) Samú ‘nasceu’ para o futebol no Beira-Mar. Até ao escalão de juvenil, dividiu-se entre o Gafanha e o histórico clube de Aveiro, cidade onde cresceu. Em 2015, chega a Braga.

«Era um miúdo quando chegou, era incrível. É daqueles que tinha uma capacidade atlética muito acima da média. Era um ‘cavalo selvagem’, com um pulmão enorme, uma capacidade de preencher o campo incrível. E depois tinha um pé esquerdo muito interessante, daqueles garotos que dá a gozo de pegar, trabalhar, porque era de uma intensidade, de uma entrega, e de uma vontade de aprender, muito, muito interessantes», recorda.

«Ele precisava constantemente estar a ser desafiado, para não sentir aquele conforto de ser mais forte, mais rápido, mais intenso que os outros. Tinha de estar sempre acima, em termos de escalão», diz Carvalho Araújo, admitindo um quadrante do seu jogo em que Samuel Costa teve de melhorar ao longo do tempo.

«Ele não era muito estável em termos emocionais, faltava-lhe algum controle, em determinados momentos e isso prejudicava-o. Aquilo podia ser a sua evolução natural. O contraponto era aquele pé esquerdo incrível, com aquela chegada… Dizíamos que era um daqueles miúdos que vale a pena investir, porque, efetivamente tinha, se não tudo, quase tudo, para ser um atleta», completa.

Samuel Costa cresceu como pessoa, trabalhou essa estabilidade emocional e isso deu frutos. Primeiro, no Almería, onde disputou três temporadas e conseguiu uma subida à La Liga. Agora, começa a segunda época no Maiorca, tendo atingido na época passada a final da Taça do Rei – algo que o clube não conseguia há décadas.  

Já para não falar das participações nos Europeus de sub-21 e sub-19, pela Seleção portuguesa. «O nosso selecionador e a sua equipa viram um Samuel muito mais adulto, muito mais maduro», resume José Carvalho Araújo.

Só nesta atual convocatória estão quatro graduados da formação bracarense – Além destes dois, há Francisco Trincão e Pedro Neto, fora outros casos como o de Pedro Gonçalves, que também passou pela Pedreira numa fase mais precoce.

«Essas gerações de 1998, 1999 ou 2000 deram um conjunto de jogadores. Foi uma geração interessantíssima e é um motivo de orgulho. Estamos a falar de quatro miúdos. E representa quão bem o Sp. Braga trabalha as camadas jovens», culmina o agora empresário, que não sente tentação de voltar ao futebol, mas certamente estará atento aos próximos dois jogos da Seleção Nacional.