Não é só dentro de campo que a pandemia Covid-19 está a afetar desportistas.

Além daqueles que estão infetados, ou cujas famílias se debatem com a doença, há alguns que fazem deste combate um dos jogos mais difíceis das suas vidas.

São desportistas que, de uma forma ou de outra, estão na linha da frente, a dar o peito a este adversário comum. Desportistas que trabalham na área da saúde e para quem esta ausência de competição está a ser incomparavelmente mais desgastante do que qualquer jogo de Liga dos Campões.

É o caso de Hugo Gaspar, capitão da equipa de voleibol de Benfica – e cujo percurso o Maisfutebol já tinha dado a conhecer há alguns meses.

O jogador internacional, de 37 anos, está novamente a representar Portugal, agora como médico de família, no jogo mais importante de todos: o da vida.

O jogo da vida comum, mas também o da própria vida. Da existência de que abdicou nas últimas semanas para proteger os seus, ao mesmo tempo que se defende a ele próprio de um rival invisível e que pode ser transportado por qualquer dos utentes que Hugo Gaspar atende no consultório.

E para ele, mesmo que esta pandemia fosse controlada hoje, o custo dela já tinha ficado bem vincado. Em cerca de um mês, somando uma quarentena provocada pelo teste positivo de dois colegas de trabalho a uma decisão dura, mas obrigatória, Hugo Gaspar passou três dias com a esposa e os filhos, de três e sete anos.

Três dias.

Três dias que poderão ser os únicos nos próximos dois meses. Ou qualquer que seja o tempo que esta pandemia demore a ser controlada.

«A cada videochamada custa mais este isolamento»

Hugo Gaspar falou-nos no final da primeira semana de trabalho, depois da quarentena de 15 dias que ele e todos os funcionários da Unidade Saúde Familiar Travessa da Saúde cumpriram, após dois colegas terem sido dos primeiros infetados do país.

Isso, como já se disse, foi a primeira razão a afastar Hugo da família. A segunda foi imposta pela consciência de quem reconhece o perigo deste vírus.

«Depois das duas semanas de quarentena obrigatória, tive três dias em família e quando voltei ao serviço, voltei a sair de casa, algo que foi uma decisão minha e da minha mulher para proteger os nossos filhos», revela, sem saber quando poderá voltar a abraçar os filhos e a esposa.

«O meu regresso a casa vai depender do comportamento da população. Este afastamento pode tornar-se grande. Já dura há três ou quatro semanas e se durar mais um mês e meio, dois meses, será muito complicado psicologicamente», admite o médico que tem ficado numa casa habitualmente utilizada como alojamento local, mas que uns amigos lhe cederam para este período.

Apesar de reconhecer a dificuldade de lidar com esta nova realidade familiar, Hugo Gaspar aponta para os casos de outros colegas que estão a viver o mesmo. Tudo pela responsabilidade do trabalho que têm em mãos.

«Tenho vários colegas médicos, enfermeiros, auxiliares, que também estão a trabalhar connosco e que optaram por estar longe das famílias para as proteger. Este é o nosso trabalho e nós decidimos fazer este afastamento para proteger os nossos. Resta-nos acreditar que vai durar pouco tempo», atira.

Apesar desta consciência, o clínico assume que há momentos mais dolorosos.

«A cada vídeochamada, este isolamento da família custa mais. Porque somos pais», justifica.

Como se fosse necessário fazê-lo.

A «corrida aos saldos» para falar com o médico de família

No que diz respeito ao trabalho, após as duas semanas com a unidade encerrada, a reabertura foi tudo o que Hugo temia: caótica.

«Foi muito stressante. Era uma população que estava muito ansiosa por ter cuidados de saúde. Por isso, quando abrimos a porta às 8 da manhã, parecia uma verdadeira corrida aos saldos. As pessoas nem respeitaram as distâncias de segurança e precisámos de umas horas até conseguir organizar todos os utentes», relata.

Com uma população de cerca de 20.000 utentes, o que significa 600 famílias para cada médico, num total de entre 1.800 e 1.900 utentes por clínico, a situação atual obriga-os a serviços mais longos, de forma a dar resposta a todas as solicitações.

«Estamos a trabalhar mais horas, claro. Tanto em termos presenciais, como à distância. Estamos a comunicar por telefone ou email com os utentes e vamos começar a ser nós a vigiar aqueles que dão positivo, mas cujo tratamento será feito em casa. Os delegados de saúde pública fizeram esse trabalho nas últimas semanas, mas já não conseguem, por isso vamos ser nós, os médicos de família, a vigiar e acompanhar cada caso», revela.

Apesar do aumento do trabalho, Hugo Gaspar sabe que, tal como as entidades oficiais têm reforçado a cada comunicação, Portugal ainda está longe de atingir o pico de casos.

E o grande receio de todos é apenas um: chegarmos ao ponto de rutura do Serviço Nacional de Saúde.

O capitão da equipa de voleibol do Benfica, que já jogou em Itália, olha para a realidade que aquele país vive, e que Espanha também atravessa, e não consegue afastar a possibilidade de o mesmo cenário chegar a Portugal.

«Acho que metade da população está consciente da realidade que vivemos, mas muita gente ainda não está. Acho que só se nos acontecer aquilo que está a acontecer em Itália e Espanha é que as pessoas se vão tornar mesmo conscientes do que temos pela frente. Todos esperamos que isso não aconteça, mas tenho muitas dúvidas de que essa situação não se venha mesmo a tornar uma realidade», alerta.

O receio de Hugo Gaspar é claro. E ele justifica-o com a semelhança em termos demográficos que existe com as populações de Espanha e Itália e com a alguma inconsciência com a qual se continua a deparar.

«A nossa população é tão envelhecida como a de Espanha e Itália. E também temos muitas pessoas com os fatores de risco desses países e até hábitos parecidos. Por isso, vai depender das nossas atitudes. Só o isolamento nos pode proteger disso, por isso, não sei se podemos escapar daquilo que está a acontecer nesses países», continua, deixando reparos a alguns comportamentos que continua a ver.

«As pessoas conseguem estar uma semana ou semana e meia fechados, mas depois começam a quebrar essa regra. Eu ainda vejo pessoas na rua como se nada fosse. Como vejo pessoas a continuar a ir ao centro de saúde sem necessidade alguma, o que me irrita bastante. Há pessoas que estão a cumprir, mas outras que não», lamenta.

«O pior é o medo de não poder voltar para a minha filha»

Até ao momento, a realidade vivida por Cláudia Aguiar é distinta daquela que Hugo Gaspar nos relata.

A andebolista, 92 vezes internacional A, é enfermeira, mas ainda consegue ir para casa depois do serviço.

Isto, porque há duas semanas, a madeirense, atleta do Sports Madeira, foi transferida do Centro de Saúde do Monte para o serviço de urgência do Bom Jesus, que foi idealizado para funcionar 24 horas como urgência, para dar resposta a casos que não estivessem relacionados com a Covid-19.

Ou seja, apesar de ter visto a sua vida mudar repentinamente, Cláudia foi afastada da linha da frente do combate na ilha, onde nesta quinta-feira se registavam 48 casos de pessoas infetadas com a doença.

Significa isto menos trabalho para a atleta de 33 anos? Nem por sombras.

«Os nossos turnos passaram a ser de 12 horas, com menos pessoal, que é obrigado a fazer o turno completo, para não haver troca de serviço», explica, depois de revelar que, entretanto, a urgência passou a funcionar apenas 12 horas e não as 24 inicialmente previstas.

«Está a ser muito duro. Estamos todos extremamente cansados, não só em termos físicos, mas psicológicos também. Porque as pessoas estão todas muito stressadas. E lidar com pessoas stressadas é muito complicado e desgastante», nota, explicando sentir resistência dos utentes para os cuidados que são obrigatórios ter nesta fase.

«Nos temos de fazer todas as perguntas para o despiste e há muita gente que desvaloriza e responde de forma brusca, não entendendo que é o que temos mesmo de fazer para segurança de todos», lamenta.

Essa segurança de que fala Cláudia Aguiar é indispensável não só local de trabalho, mas também na hora de regressar a casa, onde tem sempre à espera o abraço impaciente da filha, Leonor. Que apesar de ter apenas três anos, já sabe que os tempos que vivemos não são normais.

«De forma a tomar todas as precauções, tomo banho no serviço antes de sair. E tento sempre voltar a tomar banho antes de estar com ela, o que por vezes não é fácil. Porque estou mais de 12 horas fora de casa e quando chego há uma grande euforia, que torna difícil não dar umas beijocas e um abraço», admite, revelando sorridente: «mas ela até já vai percebendo e até já diz ‘sim mamã, já sei o Coronavírus!’.»

Porém, apesar de neste momento estar, pelo menos em teoria, mais resguardada do perigo de contágio, a enfermeira sabe que isso pode mudar a qualquer momento.

«Devido à necessidade de mobilidade dos enfermeiros, posso ter de ir parar a zona onde estão a ser recebidos os utentes infetados. E se isso acontecer, já não penso voltar para casa ao final do dia», confessa, assumindo que esse é mesmo o maior receio que tem neste momento.

«O pior de tudo é o medo de não poder voltar. E isso pode acontecer até se tiver contacto com algum doente infetado que chegue ao meu serviço», sublinha.

«Foi para ajudar pessoas que me formei em Medicina»

Há também atletas que estão a assistir a tudo isto à distância, mas com enorme vontade de saltar para dentro do campo… de batalha.

É o caso de João Souto, hoquista do Sporting, formado em Medicina, mas que não está a exercer, uma vez que interrompeu o Internato Médico no Ano Comum, precisamente para assinar pelos leões.

«Para muitas pessoas pode ser assustador aquilo que os médicos estão a passar neste momento, mas quando escolhi o curso de medicina foi para poder ajudar pessoas. Foi para isso que me formei. Poder ajudar é aquilo que me move a mim e a todos os médicos», remata de pronto João Souto, assumindo-se «mais do que disponível para ajudar em tudo aquilo que puder ser útil».

A declaração de intenção do hoquista deve-se não só ao sonho com que cresceu – e que sempre perseguiu, aliando um percurso de excelência no hóquei -, mas também à realidade que lhe vai chegando através de colegas que estão na linha da frente.

«Eu vejo o cansaço físico e psicológico dos meus colegas que estão no terreno. Não é só o facto de haver muitos doentes para tratar, mas o receio de estar infetado e de poder levar o vírus para casa», confidencia.

Nesse sentido, e assumindo que «no terreno a ajuda poderia não ser tão eficaz», Souto aponta aquilo em que ele e outros médicos poderiam ser úteis.

«Acho que podia estar na retaguarda, porque os outros doentes, aqueles que não estão infetados com a Covid-19, também precisam de ser acompanhados. E isso podia dar alguma folga aos médicos mais experientes», acredita.

Essa é, de resto, uma ideia que debatemos com Hugo Gaspar, que não descarta a possibilidade, ainda que explique os cuidados que são necessários ter antes de a implementar.

«O mais importante é que sejam montados bons planos de contingência, para podermos funcionar bem», começa por dizer, explicando depois as dificuldades que poderiam ser encontradas caso se avançasse para a necessidade de chamar mais pessoal para a linha da frente.

«O problema é que os utentes que estão do outro lado da linha precisam de um conselho, procuram uma voz amiga de quem os conheça. Se eu colocar uma administrativa a ligar para um doente, esse doente recebe as informações de forma completamente diferente de se for eu a falar. Porque eu sou o médico delas, em quem elas confiam. Será que vão confiar se falarem com pessoas que não conhecem? Algumas talvez sim, outras não», aponta.

Ainda assim, e apesar de todos desejarem que o ponto de rutura do SNS não chegue, Hugo Gaspar assume que se o país se aproximar desse limiar, todos serão poucos para ajudar.

«Se virmos que começa a existir uma grande carência, com médicos e enfermeiros infetados, teremos de recorrer a toda a ajuda possível», reconhece.

E nesse caso, é bom saber que há gente disposta a abdicar de tudo para se sacrificar por um bem comum.

A isso chama-se espírito de equipa. Espírito de sacrifício, se preferirem. E os desportistas conhecem bem esses valores.