Passaram quase três anos desde que a FIFA decidiu atribuir a organização dos dois Mundiais que se seguirão ao Mundial 2014. E o ruído é cada vez mais ensurdecedor. Em torno do Qatar, mas também da Rússia. Já se falou de corrupção, de influências políticas. Agora fala-se de direitos humanos e de vidas em risco. Mas também de pura intriga internacional.

A mais recente história a envolver a Rússia parece saída de um filme. O advogado norte-americano que a FIFA nomeou para presidir ao seu Comité de Ética e investigar precisamente as suspeitas sobre a atribuição dos dois Campeonatos do Mundo, viu a sua entrada na Rússia vetada. Está numa lista negra de «personas non gratas» para o Governo russo.

Michael Garcia é antigo procurador norte-americano e foi nomeado há um ano pela FIFA, ao lado de outro homem da lei de peso internacional, o juiz alemão, Hans-Joachim Eckhert, para presidir ao tal Comité de Ética, com a garantia de que teriam poderes de investigação e judiciais. Agora, Garcia decidiu ir ao terreno e propunha-se visitar todos os países envolvidos nas candidaturas aos Mundiais de 2018 e 2022, nos quais se incluía, recorde-se, a candidatura conjunta de Portugal e Espanha. A Rússia não perdeu tempo a reagir. E foi diretamente ao topo, a Michael Garcia. Durante o seu consulado como acusador público de Nova Iorque, Garcia esteve ligado a vários casos mediáticos. E agora viu-se envolvido no meio de um braço de ferro político entre os Estados Unidos e a Rússia.

Em junho deste ano os Estados Unidos vetaram a entrada no país de 18 cidadãos russos alegadamente envolvidos na morte de Sergei Magnitsky, um advogado que denunciou corrupção em larga escala na administração russa. Magnitsky foi detido, alegadamente torturado e acabou por perder a vida na prisão antes de ser julgado. O Governo russo reagiu de imediato, publicando uma lista idêntica, de 18 nomes norte-americanos igualmente proibidos de entrar no país, alegando que tinham eles próprios violado os direitos humanos na detenção e julgamento de Viktor Bout, um cidadão russo que foi durante muito tempo procurado pelas autoridades norte-americanas, acabou por ser extraditado e julgado e cumpre nesta altura de 25 anos de prisão nos Estados Unidos por tráfico de armas. Garcia esteve envolvido na acusação a Bout e é um dos 18 nomes da lista negra russa.

Para contornar o problema, Garcia anunciou que será o representante do seu escritório na Suíça, Cornel Borbely, quem fará as visitas à Rússia e também aos Estados Unidos, que era candidato a 2022, tal como a Austrália, Japão e Coreia do Sul. Além do Qatar, claro.

Agora, intriga internacional ao mais alto nível. Não falta nada na imensa nebulosa em que se tornaram os processos de atribuição destes dois Mundiais desde a votação do Comité Executivo da FIFA, a 2 de dezembro de 2010.

A escolha do Qatar, em particular, está envolta desde então em suspeitas e acusações de corrupção, suborno e pressões que envolvem altos membros da FIFA, no meio da luta pelo poder no organismo, mas também responsáveis políticos. Como pano de fundo, o peso económico do Qatar e, de caminho, a sua crescente influência no desporto mundial.

Em janeiro deste ano, por exemplo, o jornal France Football falava em envolvimento do próprio governo francês na escolha do Qatar, relatando um jantar, poucas semanas antes da decisão, entre o então presidente gaulês, Nicolas Sarkozy, o príncipe do Qatar, Michel Platini, presidente da UEFA e membro do Comité Executivo da FIFA, mais o então presidente do PSG. Nesse jantar teria ficado acertada, entre outras coisas, a aquisição do clube francês por investidores qatari.

São três anos de acusações e revelações nos media, suspensões de dirigentes, recuos em revelações das fontes que começaram por denunciar irregularidades e contradições do presidente da FIFA. Blatter até já admitiu que a escolha do Qatar resultou de «influências políticas».

Política, dinheiro, mas não só. Agora, também vidas em risco. O último escândalo em volta do Qatar foi a revelação pelo jornal «Guardian» de que as obras de construção das infraestruturas para o Mundial 2022 estão a ser feita à custa de redes de trabalho escravo, que forçam cidadãos estrangeiros, sobretudo nepaleses, a trabalhar em condições extremas. Há relatos de pelo menos 44 mortes só neste verão.

A Confederação Internacional de Sindicatos (CSI-ITUC), a maior organização laboral do mundo, tem vindo a denunciar o que considera atropelos graves aos direitos humanos não só no Qatar, mas também na Rússia, alegando que a aprovação de uma lei de exceção para a construção dos estádios do Mundial suspende uma série de direitos, nomeadamente no que diz respeito a trabalhadores estrangeiros.

A ITUC tem mesmo online uma petição que defende uma nova votação da atribuição do Mundial ao Qatar. Mas essa é a hipótese que a FIFA nunca admitiu. Ainda no início deste mês, Joseph Blatter começou assim a conferência de imprensa que se seguiu à reunião do Comité Executivo onde os problemas do Qatar foram debatidos: «O Mundial 2022 será no Qatar. Voilá.»

Só há um ponto em que a FIFA admite tocar. Aquele que diz mais diretamente respeito ao futebol, e que motivou uma perplexidade de base com a escolha do Qatar: como é que se decide jogar um Mundial no verão numa região onde as temperaturas chegam aos 50 graus?

Ainda esta semana o chileno Harold Mayne-Nicholls, ex-presidente da Federação do seu país e um dos responsáveis pelas inspeções às candidaturas e pelos dossiers que serviram de base à votação, veio lembrar que deixou bem claro no relatório o risco que seria jogar no Qatar no verão.

«Escrevemos que seria muito arriscado para a saúde jogar no Qatar em junho-julho. Dissemos que seria arriscado mesmo com o sistema de arrefecimento que eles prometeram», disse Mayne-Nicholls à Sky News, dando ainda conta da sua perplexidade quando se foi apercebendo, nos dias que antecederam a votação, de que o Qatar se estava a tornar no candidato mais forte. «Falámos com membros do Comité Executivo e ficámos surpreendidos por perceber que iriam votar no Qatar», nota, embora defenda que «não há nenhuma prova» de que tenham existido subornos, e garanta que a ele, pessoalmente, nunca ninguém lhe ofereceu nada.

É sobre esse ponto que a FIFA se propõe atuar nesta altura, entre exigências de indemnização dos países derrotados, nomeadamente da Austrália, face à alteração dos pressupostos de candidatura, e os alarmes a dispararem no futebol europeu perante a hipótese de uma mudança radical no calendários que afetaria mais de uma época. Blatter anunciou na tal conferência de imprensa que a mudança para outra altura do ano irá ser estudada, mas nunca haverá uma decisão antes do Mundial 2014.

A criação do Comité de Ética foi a resposta da FIFA às críticas. Em janeiro deste ano, Michael Garcia e Hans-Joachim Eckhert anunciaram formalmente que iriam conduzir uma «investigação aprofundada» sobre as «alegações em torno das candidaturas aos Mundiais 2018 e 2022». Na semana passada, Garcia deixou um apelo a todas as eventuais testemunhas envolvidas para que cumpram o seu dever de relatar qualquer irregularidade, assegurando de caminho anonimato, «em circunstâncias apropriadas». O assunto não está morto, mas alguma vez será mais do que ruído?