Antes de começar o Mundial, o nome de Andries Noppert não apareceu em nenhuma das apostas de potenciais craques ou revelações a seguir. Só naqueles artigos de curiosidades, a dizer que ele era o jogador mais alto na competição. Agora, o guarda-redes que há dois anos foi aconselhado a deixar o futebol e tornar-se polícia e chegou ao Qatar sem ter vestido uma única vez a camisola da seleção é o titular dos Países Baixos no Campeonato do Mundo. Foi protagonista na vitória sobre o Senegal e deverá voltar a ocupar a baliza nesta sexta-feira, frente ao Equador. Se Van Gaal não voltar a mudar, claro.

Noppert tem 28 anos e, tudo somado, meia centena de jogos como profissional em dez anos de carreira. Haveria sempre expectativa em torno do guarda-redes que Louis Van Gaal escolheria, porque o treinador pôs tudo em causa antes do Mundial e implementou um método «científico» para trabalhar penáltis, o que redundou na escolha de três guarda-redes que somavam, juntos, um total de oito internacionalizações. No fim, o único que nunca tinha jogado pelos Países Baixos foi o escolhido pelo veterano e excêntrico treinador, que é aos 71 anos o mais velho no Mundial, ano e meio depois de ter saído da reforma e do «paraíso» onde vivia no Algarve para assumir pela terceira vez a seleção dos Países Baixos.

«Não foi má escolha», sorriu Van Gaal depois de Noppert ter brilhado com várias defesas na vitória sobre o Senegal na estreia no Mundial: «Escolhi-o porque é o jogador em melhor forma.»

Itália, a «fumar como uma chaminé» e sem sucesso, mas com boas memórias

Quem diria, olhando para o percurso do gigante Noppert – mede 2,03m. Agora ele está de volta ao Heerenveen, onde fez a formação, finalmente a jogar com regularidade e a deixar para trás um percurso tortuoso. Em 2014 deixou o Heerenveen, sem ter chegado à equipa principal. Depois foi para o NAC Breda, onde se estreou apenas à terceira temporada, no segundo escalão. Fez meia dúzia de jogos em duas épocas, não via futuro onde estava e decidiu tentar algo diferente. Foi para o Foggia, na Serie B italiana.

Pouco jogou, ficou-se pela meia dúzia de jogos em ano e meio. As exibições que fez foram irregulares, mas deixou boas recordações. Numa reportagem do canal neerlandês NOS, o treinador de guarda-redes do clube italiano, Nicola Dibitonto, fala de um jogador que «fumava como uma chaminé», mas que criou desde logo boas relações no balneário e também com os adeptos, contando que ainda hoje troca mensagens com Noppert. De Itália fica também uma história com a Mafia que, segundo conta a NOS, foi responsável pelo roubo do carro de Noppert. Depois disseram-lhe que podia comprar o automóvel de volta, mas ele recusou.

A nova oportunidade a uma «pessoa espetacular» pela mão de um português

Acabada a aventura em Itália no verão de 2019, Noppert estava de novo sem clube. E foi então que apareceu a oportunidade de regresso aos Países Baixos, pela mão de um treinador português. Cláudio Braga orientava o Dordrecht e deu uma oportunidade ao guarda-redes.

«Tinha jogado pouco, vinha de muitas lesões e encontrava-se sem clube. Mas decidimos dar-lhe uma oportunidade na altura», conta Cláudio Braga ao Maisfutebol: «Entrou no nosso clube já em período competitivo, não fez a pré-época connosco, então tinha ali um trabalho difícil.»

«Acabou por fazer dois jogos só. Foram dois jogos com qualidade. Mas teve o azar de voltar às lesões», continua o treinador português, que recorda um jogador com qualidade: «Dentro do treino e do jogo, apesar de eu o ter pouco tempo comigo, foi um guarda-redes muito seguro, que com a comunicação e a visão que tinha para o jogo dava confiança e tranquilidade à linha defensiva. No treino estava sempre muito conectado, muito envolvido com os colegas de trabalho. Tem uma altura fantástica. Mas não é só pela altura, é também pelo proveito que tira nos momentos e jogos dessa estatura física.»

Fora de campo, é uma pessoa «espetacular» na relação com os outros, diz Cláudio Braga: «É muito, muito extrovertido. Na sala do pequeno almoço, no treino, no balneário, nos corredores do clube, em conversa com os funcionários do clube, era sempre uma pessoa muito alegre, muito aberta. Também muito direto na sua opinião. Há quem goste, há quem não aprecie muito, mas é um bocadinho a pessoa que é.»

E se fosses para a polícia?

No fim da época, Noppert deixou o Dordrecht. E foi então que surgiu a hipótese de abandonar a carreira, aconselhado pela família. Embora ele garanta que nunca pôs de facto essa hipótese. «Os meus pais sempre me apoiaram, mas eu percebia o problema deles. Eu estava sempre a sofrer recaídas da recuperação da lesão, estava com 25 anos e jogava num nível secundário», contou Noppert numa entrevista ao site NU onde revela que a ideia de se tornar polícia partiu da companheira: «Ela queria que eu pensasse em alternativas. O que achas de ires para a polícia? Sim, ela achou que eu era o género de tipo para isso. Conversámos sobre isso. Mas no fim ouvi-me a mim próprio. Tinha um objetivo e queria continuar a ser guarda-redes. Nunca pensei seriamente em parar.» 

Ficou sem trabalho durante a pandemia, improvisou uma bicicleta estática no pátio de casa e manteve-se em forma.

Depois, em janeiro de 2021, apareceu a oportunidade de ir para o Go Ahead Eagles. E aí sim, Noppert encontrou o seu caminho. Jogou regularmente nessa temporada e esta época seguiu com o treinador para o Heerenven, um regresso a «casa». «Foi o mesmo treinador, o Kees van Vonderen, que acabou por o levar para o Heerenveen», conta Cláudio Braga, destacando a «chama» de Noppert, a força de vontade que o levou a persistir: «Dentro da qualidade que ele tem, muito forte como ser humano, a pressão não o ataca muito. E foi mesmo encontrar o caminho certo. E as pessoas certas também.»

De desconhecido a aposta de Van Gaal

Aos 28 anos, Noppert pode ir ainda mais longe, acredita o treinador português: «Se o Campeonato do Mundo lhe correr bem e à seleção, penso que tem tudo e está preparado para dar um próximo passo, entrar num clube de topo. Se calhar também mudar de país, onde a competitividade seja maior, e testar os seus limites.»

Para já, Noppert aproveita o momento. «Sempre sonhei com isto, mas nunca pensei que fosse possível», disse após o jogo com o Senegal e comentando a questão dos guarda-redes, que tem sido amplamente debatida nos Países Baixos e está longe de ser consensual: «Faz sentido eu ser titular? Quando é que seria a altura certa? Nos Países Baixos todos nos queixamos de que não temos bons guarda-redes, mas é preciso dar uma oportunidade aos novos. Não me interessa se faz sentido, estou a fazer o meu melhor e é tudo o que posso fazer.»

O guarda-redes, que só soube que seria titular três dias antes da estreia, agradece de resto a confiança de Van Gaal: «Só há um treinador que podia fazer acontecer uma coisa como esta.» E, «sem querer parecer puxa-saco», encontra várias afinidades com o selecionador: «Somos muito parecidos em muita coisa. Temos o mesmo sentido de humor e pensamos o mesmo em muitos aspetos.»

«São diretos, provavelmente agora que estão a trabalhar os dois encontram essas características de personalidade», observa Cláudio Braga, que nesta altura é coordenador da formação do Maccabi Telavive, mas tem uma longa ligação aos Países Baixos: «Pode haver ali um fortalecer das qualidades de treinador para jogador e vice-versa.»

Van Gaal disse que iria continuar a apostar em Noppert, mas tratando-se de Van Gaal nunca se sabe. «Sabemos que a regularidade e ser constante nas prestações é muito importante. Por isso, ele tem as qualidades e tem tudo para continuar, mas vamos ver como se vai desenvolvendo o torneio e como as coisas vão correr. Tem de estar preparado, tem que dar resposta à altura quando o momento chegar. Agora vai ser o segundo jogo, vamos ver se ele vai ser a aposta do Van Gaal», diz Cláudio Braga.

Os penáltis, o herói de 2014 excluído e o treinador de voleibol

O tema dos guarda-redes é motivo de muita controvérsia no país, acrescenta o técnico português: «Tudo isto está a ser muito falado na Holanda dos media, é um tema de conversa brutal diariamente.»

O processo de seleção dos guarda-redes foi mais uma peculiaridade de Van Gaal, que utilizou quatro guarda-redes em 15 jogos antes do Mundial e em setembro anunciou que estava à procura de um «penalty killer», um guarda-redes especialista em penáltis, uma obsessão antiga. Agora, ele contratou um técnico para trabalhar com os guarda-redes: Peter Murphy, que é treinador de voleibol. É também um dos mentores de um método que se chama ActionType, o qual procura explorar as potencialidades inconscientes de cada indivíduo, segundo explicava a NOS num artigo publicado em setembro e que contava também que Murphy trabalhou vários anos com o Ajax.

«Os penáltis são muitas vezes decisivos. O Murphy vai fazer testes com os guarda-redes e falar com eles sobre formas de perturbar os adversários, também há recursos para isso. Se a ciência diz que é possível, vamos ver se é possível melhorar o nosso desempenho», explicou Van Gaal.

Esse técnico integrou um estágio especial no qual participaram seis guarda-redes e esse trabalho influenciou a escolha de Van Gaal sobre os guardiões que iriam ao Mundial.

Desde logo ficou excluído Tim Krul, o guarda-redes que Van Gaal lançou em campo mesmo no final do jogo com a Costa Rica dos quartos de final do Mundial 2014, e que levou a «Laranja» às meias-finais, ao defender duas grandes penalidades. Krul, atualmente no Norwich, recusou participar no tal estágio, segundo explicou em setembro Van Gaal, direto como sempre: «Ligou-me a dizer que passava. Achei que era uma pena, porque sei que estatisticamente ele defende muitos penáltis. Não há futuro para ele na seleção, porque não quis vir.»

Depois de ter surpreendido o mundo em 2014, agora Van Gaal quer ir mais longe. «Em 2014, aquela mudança de guarda-redes foi inspiração. Agora, vamos ter uma base científica. Isso é inovador. Não quero alongar-me sobre isto, senão outros países irão fazer o mesmo. Somos provavelmente o primeiro país a fazer isto com uma base científica», disse Van Gaal.

Depois de descartar Krul, o treinador deixou cair Jasper Cillessen, que soma mais de 60 internacionalizações e aos 33 anos está de volta aos Países Baixos, a jogar no NEC. «Não sei se têm visto os jogos do Cillessen. Há várias semanas que não está em forma. E o Mundial é agora», explicou. Fora das opções estava já Stekelenburg, que esteve no Euro 2020 mas aos 40 anos já não é opção no Ajax. Os três guarda-redes escolhidos por Van Gaal para o Qatar foram então Remko Pasveer, o novo titular do Ajax que tem também uma história incrível, Justin Bijlow, guardião do Feyenoord e, com seis internacionalizações, o mais «veterano» na seleção dos três, e ainda Andries Noppert.

No fim de contas, Van Gaal optou por dar a titularidade a Noppert, o menos experiente dos três, puxando do seu longo currículo para rejeitar a ideia de que estava a correr um grande risco: «Eu lancei o Van der Sar aos 19 anos.»

Van Gaal está a ser coerente com os seus princípios, diz Cláudio Braga: «Ele repete muitas vezes que escolhe jogadores pelas prestações no momento. Quem está numa baixa de forma há três, quatro meses, muito dificilmente vai ser selecionado por Van Gaal. Ele foi sempre muito direto e nunca escondeu a sua visão e a sua forma de escolha.»