Argentina-Holanda. Agora Países Baixos, mas não mudou a essência. Este jogo é sinónimo de Campeonato do Mundo como poucos. Não é apenas um dos confrontos mais repetidos, é também o jogo que alimenta uma rivalidade construída em duelos memoráveis com constelações de estrelas em campo, paixão, tensão e expectativa garantidas. O jogo que já decidiu um título, que teve golos de sonho e também já aborreceu, que teve expulsões e confusão com fartura, repete-se pela sexta vez em Mundiais no Qatar, agora por um lugar na meia-final.

Esta é uma sexta-feira de luxo no Mundial 2022, primeiro com um Brasil-Croácia que põe um dos grandes favoritos frente ao vice-campeão em título, depois com um Argentina-Países Baixos que reedita um enorme duelo e tem todos os contornos para justificar a expectativa. A Argentina com as expectativas no céu, embalada pela imensa paixão de um país e com Messi no seu último Mundial, no jogo 1001 da carreira, a procurar ser finalmente feliz. Os Países Baixos perante um enorme teste, na derradeira competição também de Louis Van Gaal, o treinador que saiu da reforma para, lutando contra um cancro, tentar mais uma vez levar a Oranje ao título que sempre lhe escapou. Os Países Baixos perderam três finais, só há uma seleção com igual registo e é precisamente a Argentina. Mas a albiceleste já festejou duas vezes, ao contrário do rival.

Este é também o duelo entre o mais velho e o mais novo treinador no Qatar, entre os 71 anos de Van Gaal e os 44 de Scaloni. É um jogo em que o treinador neerlandês assume o desejo de vingança, depois de ter liderado a equipa na meia-final de 2014, perdida nos penáltis. Uma obsessão de Van Gaal, que procurou uma base científica para preparar outra eventual decisão dos 11 metros, acabando a optar por um guarda-redes até aqui desconhecido. É um duelo que também se faz de provocações e tensão, um jogo antes do jogo para não mostrar todas as cartas.

As duas seleções defrontaram-se cinco vezes em Mundiais e o saldo é de equilíbrio. A Laranja ganhou por duas vezes, a Argentina saiu a festejar outras tantas e pelo meio houve um empate. Com tantos momentos para a história e com nomes que fazem sonhar: Cruyff, Kempes, Bergkamp, Messi. O facto de ter entrado para a memória coletiva desta forma sem ter sequer tido Maradona em campo diz muito sobre a dimensão dos duelos entre Argentina e Países Baixos que tiveram o Mundial como palco.

E bom, na verdade também houve um confronto que teve Diego em campo. Um ano depois da final de 1978, as duas equipas defrontaram-se na Suiça, num jogo evocativo do 75º aniversário da FIFA. E lá estava o ainda adolescente Maradona, que tinha ficado fora das escolhas de Menotti para o Mundial, a confirmar todo o seu potencial, em mais um duelo intenso que acabou sem golos. Teve depois um desempate por penáltis, que a Argentina venceu por 8-7.

Nesta sexta-feira, pelas 19h, lá estarão eles outra vez. Com os primeiros equipamentos, como deve ser: de um lado as riscas azuis celestes e brancas, do outro as camisolas laranjas. Até lá, fica a recordação dos outros duelos entre ambos que tiveram o Mundial como palco.

Países Baixos-Argentina, 4-0

Mundial 1974, 1ª jornada da 2ª fase de grupos

Em 1974 a magia foi laranja e a Argentina foi a primeira vítima ilustre da revolução que os Países Baixos levaram àquele Mundial, liderada em campo pelo génio do Johan Cruyff e no banco por Rinus Michels, o treinador que tinha aperfeiçoado no Ajax o conceito a que chamaram Futebol Total. Uma ideia de jogo feita de mobilidade permanente e dinâmica coletiva, de elegância e potência, sublimemente interpretada na Alemanha por aquele bando de jogadores altos e esguios. Veja-se o primeiro golo, um passe picado de Van Hanegem a lançar a velocidade do 14, que driblou o guarda-redes e seguiu pela esquerda, para encontrar o melhor ângulo de remate. Kroll apontou o segundo aos 25m, depois Cruyff assistiu para o cabeceamento de Rep no terceiro e por fim, já nos descontos, disparou de recarga para selar o 4-0 final. O guarda-redes Jongbloed foi pouco mais que espectador nesse jogo, perante uma Argentina em transição, antes da chegada de César Luis Menotti e da aposta para 1978. Quanto à Laranja, continuou a seduzir adeptos até à final, perdida para a Alemanha.

Argentina-Países Baixos, 3-1

Mundial 1978, Final

A desforra da Argentina chegou quatro anos mais tarde, no seu Mundial. A competição foi marcada por muita controvérsia e nos Países Baixos considerou-se até a hipótese de a seleção não viajar, por pressão da opinião pública, quando o mundo já começava a inteirar-se da brutalidade do regime argentino. Mas foi, sem Johan Cruyff, que recusou participar para ficar em Barcelona com a família, vítima de um violento assalto em casa, meses antes. Foi mesmo na final que as duas seleções se encontraram, no jogo que definiu para sempre a rivalidade. A pressão psicológica da Argentina começou ainda no túnel, com o jogo atrasado por causa de uma discussão em torno da proteção que o defesa René van de Kerkhof usava no braço, enquanto o relvado do Monumental se enchia dos papelitos que evocam para sempre a memória daquele Mundial. A final foi de Mario Kempes, o avançado de cabeleira farta que recebeu à entrada da área e avançou entre dois defesas para o primeiro golo, antes de Naninga empatar de cabeça e forçar o prolongamento. No tempo extra, Kempes fez o segundo numa jogada de insistência e assistiu Bertoni para 0 3-1 final. A Argentina festejou o seu primeiro título e a Holanda, ainda era assim que a conhecíamos, ficou a lamentar a segunda final perdida seguida.

Países Baixos-Argentina, 2-1

Mundial 1998, Quartos de final

«Dennis Bergkamp! Dennis Bergkamp! Dennis Berkgamp! Dennis Bergkaaaaamp!» Era tudo o que o comentador neerlandês conseguia dizer, o nome repetido mais vezes do que os três toques de que ele precisou para criar um monumento. O terceiro duelo entre as duas seleções foi outro clássico. Graças ao golo ao cair do pano do craque que era elegância pura e que decidiu os quartos de final a favor dos Países Baixos, mas não só. Teve muito que contar antes disso. A Argentina já não tinha Diego Maradona, mas tinha uma equipa com muito potencial e muito motivada depois de afastar a Inglaterra, noutro jogo épico. Em Marselha, Kluivert começou por adiantar a «Laranja», depois de uma assistência de Bergkamp, antes de «Piojo» López empatar. O jogo ainda só levava 17 minutos e a partir daí foi-se ganhando intensidade. Até ao drama final. Primeiro foi expulso Numan. Depois o «Burrito» Ortega, grande esperança da Argentina, viu dois amarelos em sequência, um por simulação e outro por responder a uma provocação de Van der Sar com uma ameaça de cabeçada que o guarda-redes dramatizou. Van der Sar confessou agora ao jornal AD o que disse afinal a Ortega: «Disse-lhe que tinha uma linda mãe, digamos.» Ortega, que ficou para sempre marcado por aquele momento, contou que ainda ia a caminho do balneário quando ouviu o som do estádio a reagir ao monumental golo de Bergkamp.

O resumo do jogo

E o relato lendário do golo de Dennis Bergkamp

Países Baixos-Argentina, 0-0

Mundial 2006, última jornada da fase de grupos

O menos relevante dos duelos entre as duas seleções, ainda que houvesse potencial com fartura em campo. De um lado os Países Baixos de Van der Vaart e Sneijder, de Van Persie e Van Nistelrooy, do outro uma Argentina com um então adolescente Lionel Messi e com Juan Riquelme, que sairia para dar lugar a Pablo Aimar. Nas bancadas estava Maradona, o banco dos Países Baixos tinha Van Basten, agora selecionador. Mas o jogo não lhes fez justiça. Estava em causa o primeiro lugar do grupo, o empate bastava à Argentina e a Laranja também não fez para muito mais que o nulo final. A Argentina foi primeira e seguiu até aos quartos de final, onde caiu frente à Alemanha. A Oranje terminou em segundo e coube-lhe defrontar Portugal nos oitavos. Mal sabia no que se metia: a Batalha de Nuremberga, jogo com recorde de cartões em Mundiais, decidido num golo de Maniche.

Holanda-Argentina, 0-0 ap (2-4 gp)

Mundial 2014, Meias-finais

Mais uma grande decisão em jogo, para uma meia-final que foi de antí-climax. O jogo que tanto prometia foi um longo bocejo, sem que ninguém estivesse disposto a dar o flanco quando estava tanto em causa. A primeira meia-final de um Mundial que acabou sem golos ao fim de 120 minutos teve como ponto mais alto um grande corte de Mascherano a um remate de Robben em cima dos 90m, evitando o golo que poderia ter decidido a partida. Mas depois os penáltis devolveram emoção à decisão. Nos quartos de final, frente à Costa Rica, Van Gaal tinha sacado o guarda-redes suplente da cartola e foi feliz: Tim Krul entrou e foi herói no desempate por penáltis. Mas agora já tinha esgotado as substituições quando os penáltis chegaram, porque Van Persie teve de sair por motivos físicos já no decorrer do prolongamento. Messi foi o primeiro a bater Cillessen e desta vez foi o guarda-redes da Argentina a vestir a capa de herói, defendendo os remates de Vlaar e Sneijder. No final, Van Gaal tentava ainda assim reclamar algum do crédito, lembrando os tempos em que treinara Sergio Romero no AZ Alkmaar: «Fui eu que o ensinei a defender penáltis.»