Escreveu-se história com todas as letras na 22ª edição do Campeonato do Mundo. Do percurso de Portugal à consagração da Argentina e de Messi, o resumo do Mundial que se jogou no Qatar em histórias, figuras, números, frases e curiosidades

Qatar 2022

20 novembro a 18 dezembro 2022

Anfitrião: Qatar

Campeão: Argentina

2ª lugar: França

3º lugar: Croácia

4º lugar: Marrocos

Jogos: 64

Golos: 172 (2,69 por jogo)

Melhor marcador: Kylian Mbappé (França), 8 golos

Portugal

A caminhada até aos quartos de final foi a terceira melhor participação de Portugal em Mundiais, mas terminou com sabor a frustração face ao potencial da equipa, sublimado num jogo para a memória eterna da seleção frente à Suíça. O percurso até chegar ao Mundial foi sinuoso: o apuramento só chegou ao fim dos play-off com Turquia e Macedónia do Norte, que tinha feito o favor de eliminar a Itália. No Qatar, Cristiano Ronaldo começou por assinalar o seu último Campeonato do Mundo escrevendo história logo ao primeiro jogo – com o penálti que lançou a vitória sobre o Gana, tornou-se o único a marcar em cinco Mundiais. Mas a história do capitão, que antes da concentração deu uma entrevista a assumir a rutura com o Manchester United e chegou ao Mundial desempregado, com um ruído ensurdecedor à sua volta, seria a descer a partir daí. Portugal garantiu o apuramento logo ao segundo jogo, com Bruno Fernandes a brilhar e a bisar na vitória sobre o Uruguai. Fernando Santos rodou opções frente à Coreia do Sul, na última jornada, mas manteve Ronaldo no onze. Quando o substituiu, as câmaras captaram o que disse o capitão. «Estás com uma pressa do c… para me tirar, f…» Cristiano garantiu que aquilo era dirigido a um adversário que o mandava apressar-se. De início Fernando Santos repetiu essa versão, depois disse que afinal tinha ouvido melhor. No jogo seguinte deixou Ronaldo no banco, suplente num jogo decisivo pela primeira vez em 18 anos. E Portugal viu o futuro. A equipa embalou para um grande jogo, feito de dinâmica, talento, frescura e alegria, coroado com um hat-trick do miúdo que foi chamado a calçar as botas de Cristiano, Gonçalo Ramos. 6-1 à Suíça, nesse dia o céu parecia o limite. Mas Portugal desceu à terra no jogo seguinte. Um golo solitário deu a vitória a Marrocos e mandou Portugal para casa. Ronaldo abandonou o campo em lágrimas, dura e sofrida a sua última imagem num Mundial. Quanto à seleção, fechou para já um ciclo com a saída de Fernando Santos, o treinador que em oito anos bateu todos os recordes à frente da equipa das quinas.

O Mundial

Surpresas, emoções e choques com fartura, equipas-sensação, duelos que já são clássicos, recorde de golos, uma final alucinante e a consagração do génio de Lionel Messi, que levou a Argentina até à conquista da sua terceira estrela de campeã. 2022 foi um grande Mundial. E teve em campo o pior anfitrião da história, a seleção do Qatar reduzida à expressão futebolística do país que, apesar da sua pequena dimensão e irrelevância desportiva, conseguiu através de influência financeira e política levar o Mundial até casa. 

O Mundial que se jogou num país de clima tórrido no verão e que por isso passou para o final do ano, virando o calendário europeu do avesso, viu-se envolto em controvérsia sobre questões extra-futebol como nenhum outro, ainda que antes deste vários outros grandes eventos desportivos tenham também sido usados para promoção de regimes que não respeitam direitos universais.

Os protestos prolongaram-se até ao início da competição, mas depois o futebol assumiu o palco. Com tanto que contar. A reviravolta da Arábia Saudita que derrotou a Argentina foi um primeiro aviso e entrou direitinha para a história dos grandes choques em Mundiais. Seria, no fim de contas, um toque a reunir para os futuros campeões.

No dia seguinte foi o Japão a aplicar a mesma fórmula à Alemanha. Faria o mesmo à Espanha, numa louca última jornada do Grupo D, de que a Roja saiu viva por pouco. Para a tetracampeã Alemanha, seria o fim da linha. Também a Bélgica se despediu ao fim de três jogos do Mundial, no meio de claro mal-estar entre referências de uma geração a que chamaram de ouro. E a Dinamarca. No fim de uma fase de grupos com jogos e resultados memoráveis, prolongados através de períodos de descontos longos como nunca se tinha visto antes, ninguém saiu incólume: não houve uma única equipa a vencer os três jogos da primeira fase.

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Os oitavos de final trouxeram a eliminação da Espanha e confirmaram Marrocos como a revelação do Mundial. Na ronda seguinte, caíram mais favoritos. Desde logo o Brasil, aos pés da Croácia ainda de Luka Modric e tão competitiva como sempre, que depois da final de 2018 deixou o Qatar com o terceiro lugar. Também a Inglaterra, que esteve muito perto mas saiu de cena frente à França, Portugal e os Países Baixos, após um clássico muito quente com a Argentina.

Para o fim ficou um duelo de luxo. O campeão do mundo a defender o título frente à Argentina de Leo Messi. O enredo era de sonho, mas aqueles 120 minutos mais os penáltis conseguiram superar a imaginação. O jogo dos jogos.

A final

Argentina-França, 3-3 ap (4-2 gp)

Estádio Lusail, em Lusail

Argentina: Emiliano Martínez; Molina (Montiel, 90m), Romero, Otamendi, Tagliafico (Dybala, 120m); De Paul (Paredes, 102m), Mac Allister (Pezzella, 116m), Enzo Fernández; Di María (Acuña, 64m), Julian Alvárez (Lautaro, 102m), Messi. Treinador: Lionel Scaloni

França: Lloris; Koundé (Disasi, 120m), Varane (Konaté, 113m), Upamecano, Theo Hernández (Coman, 71m); Tchouaméni, Rabiot (Fofana, 96m); Dembelé (Thuram, 41m), Griezmann (Camavinga, 71m), Mbappé; Giroud (Kolo Muani, 41m). Treinador: Didier Deschamps

Golos: 1-0, Messi, 23m gp; 2-0, Di María, 36m; 2-1, Mbappé, 80m gp; 2-2, Mbappé, 82m gp; 3-2, Messi, 109m; 3-3, Mbappé, 118m gp

A final ao minuto no Maisfutebol e a crónica de jogo

Figura

Lionel Messi

O adolescente de 2006, a estrela que tremeu quando Maradona lhe deu a braçadeira em 2010, o capitão que foi até à final para acabar vencido em 2014 e que em 2018 caiu cedo frente à França já de Mbappé, marcou 2022 e o seu quinto Mundial como a despedida. Antes do Qatar, Lionel Messi já tinha aliviado a pressão que carregou tanto tempo com a camisola da Argentina, na conquista da Copa América de 2021. Aos 35 anos, foi um Messi mais seguro e mais determinado que nunca aquele que liderou, potenciou e tirou o melhor partido de uma seleção jovem unida em torno do seu astro, a cada jogo, a cada minuto do Mundial 2022. Ele jogou-os todos. De recorde em recorde, a golpes de génio. O golaço ao México, depois da derrota na estreia, simboliza a forma como mostrou o caminho no Mundial em que marcou, criou golos, usou a experiência e o instinto para superar o peso dos anos e encantou, uma e outra vez, até ao momento maradoniano da meia-final com a Croácia. E depois na final, que o consagrou como campeão e de caminho como recordista de jogos em Mundiais. E que lhe deu o título que mais procurou. Para lá da questão do melhor de sempre, essa discussão impossível, ele precisava de selar o legado com o seu sonho maior. Já está. Campeão do mundo, feliz como um menino.

Número

Oito golos, uma Bota de Ouro e uma promessa

Kylian Mbappé marcou três golos na final do Campeonato do Mundo e não a ganhou. São quatro ao todo se contarmos 2018, nunca ninguém fez tantos golos numa final. Marcou oito no Qatar, foi esse o título que venceu no Mundial em que procurava, com a França, tornar-se bicampeão do mundo, o primeiro em 60 anos. Tem 12 golos em 14 jogos, tantos quanto Pelé, a comparação que o perfil e o percurso de Mbappé tornam inevitável. E a apenas um de Messi, que fez 26 jogos. Aos 23 anos, o fenómeno que veste de azul voltou a fazer história no Qatar. Numa seleção francesa que foi superando uma montanha de adversidades, com sucessivas lesões e até um vírus que limitou vários jogadores na preparação para a final, Mbappé assumiu-se como referência, a potência e a capacidade de desequilíbrio a fazerem a diferença. Apareceu na final quando a França conseguiu enfim reagir ao sufoco argentino, marcou um enorme golo e converteu dois penáltis. Não foi suficiente. Mas Mbappé continua por aí e tem muito tempo pela frente. Ele próprio fez questão de o lembrar na ressaca da final perdida. Ele voltará.

Frase

«Há mais de um ano avisei os jogadores que tinham de chegar ao Mundial com pelo menos 1000 penáltis marcados»

A frase voltou para assombrar Luis Enrique. Antes de a usar na sala de imprensa, ele começou por dizê-la na Twitch, num dos diretos que fez ao longo do Mundial. O selecionador espanhol foi streamer no Qatar, entretendo-se ao final de cada dia numa forma direta e notavelmente descontraída de comunicação com os adeptos. Que lhe valeu muitas críticas nos meios de comunicação tradicionais. Em campo, a Espanha começou por brilhar, com uma goleada à Costa Rica a que se seguiu um empate num grande jogo com a Alemanha. Mas na última jornada a Roja foi incapaz de contrariar o Japão e acabou a cair para o segundo lugar do grupo. Com mais uma frase desconcertante de Luis Enrique no final, a garantir que não tinha percebido que chegou a estar eliminado do Mundial. Não foi aí, foi logo no jogo seguinte. O jogo de posse que a Espanha cultivou e que na sua melhor versão foi a fórmula de sucesso dos títulos europeu e mundial, voltou a traduzir-se numa circulação estéril. Dois remates, mais de mil passes. E se houve mesmo mil penáltis, eles de nada adiantaram. Sarabia, que entrou precisamente para bater uma das grandes penalidades no desempate, foi o primeiro. Mas todos os jogadores espanhóis falharam o seu pontapé. A festa foi de Marrocos, a Espanha voltou para casa de cabeça baixa e Luis Enrique seria demitido poucos dias depois.

Histórias

Leões para a história

Nunca uma seleção africana tinha chegado tão longe. Marrocos entrou a travar a Croácia, depois venceu a Bélgica e acabou a festejar o apuramento frente ao Canadá, como líder do grupo e com apenas um golo sofrido – e foi marcado na própria baliza. Os Leões do Atlas estavam só a aquecer. Embalada pelo entusiástico e ruidoso apoio nas bancadas, a seleção que a seguir levou a melhor sobre a Espanha nos penáltis e depois mandou Portugal para casa foi em campo uma combinação admirável de organização, motivação, energia e talento. Bono, Hakimi, Zyiech, Aguerd, o carrasco de Portugal En-Nesyri, o inesgotável Amrabat ou a revelação Ounahi ajudaram a iluminar o Mundial. A equipa que em apenas três meses recuperou jogadores de costas voltadas com a seleção e se uniu em torno do orgulho nas raízes de um grupo com maioria de jogadores nascidos fora de Marrocos, empunhando a bandeira de África e capitalizando o apoio do mundo árabe, caiu numa meia-final carregada de significado histórico com a França e despediu-se com o quarto lugar.

De protesto em protesto até à festa do Qatar

Os jogadores da Alemanha a perfilarem antes da estreia com a mão frente à boca, em protesto pela ameaça com sanções desportivas se usassem braçadeiras alusivas aos direitos LGBTQI+, são uma das imagens que fica do Qatar. Dias antes, um discurso bizarro de Infantino selava o alinhamento da FIFA com o Qatar. O poder estava daquele lado, por muitas vozes que se tenham levantado – e foram tantas – a falar em direitos humanos, a denunciar as condições de trabalho dos milhares de migrantes que construíram as infraestruturas de luxo do Mundial, a lembrar que este é um país que menoriza a condição feminina, criminaliza a homossexualidade, restringe a liberdade de expressão. Houve ameaças de boicotes e posições mais fortes que ficaram pelo caminho, houve pressões que levaram a algumas mudanças legislativas relativas aos trabalhadores e levaram o Qatar a prometer uma face mais suave no Mundial. Nem sempre foi exatamente assim, mas o Qatar fez mesmo a sua festa. Tal como a planeou durante tanto tempo, numa estratégia de afirmação e influência com ramificações profundas. O manto que o próprio emir vestiu a Messi antes da consagração do 10 e da Argentina, que colará para sempre aquela imagem histórica ao anfitrião, fica como símbolo do sucesso do plano do Qatar.

O silêncio que disse tanto

Do Qatar fica outra imagem forte para lá de futebol. O silêncio dos jogadores do Irão enquanto soava o hino antes do jogo com a Inglaterra, na estreia, disse muito mais do que palavras sobre a forma como eles sentiam o que se vive no seu país, os protestos nas ruas contra a opressão sobre as mulheres. O portista Taremi e os companheiros viveram sob uma pressão avassaladora um Mundial em que até acabaram a decidir o futuro frente aos EUA, outro jogo carregado de simbolismo político. O português Carlos Queiroz procurou proteger o grupo, chegou a perder as estribeiras com as perguntas que se repetiam e criticou o foco mediático seletivo, num Mundial em que se mediatizaram mais do que nunca questões geopolíticas, que entraram pelo campo, pelas salas de imprensa e se prolongaram nas bancadas.

Qué mirá, bobo?

Argentina e Países Baixos escreveram mais uma página para a história de uma rivalidade clássica em Mundiais, esta com os nervos à flor da pele como nunca. Foi um grande jogo, aquele em que a albiceleste chegou a dois golos de vantagem, antes de Weghorst marcar um e mais outro já nos descontos e levar a decisão para prolongamento. O árbitro Matheus Lahoz procurou gerir a tensão varrendo as duas equipas a cartões amarelos. Foram 18 no total, contando dois para o banco da Argentina, mostrados a Walter Samuel e Lionel Scaloni, mais o duplo amarelo a Dumfries já depois dos penáltis. Portanto, um novo recorde, que deixa para trás a famosa Batalha de Nuremberga de 2006 entre Portugal e, sim, os Países Baixos. As provocações prolongaram-se nos penáltis, acabaram com os jogadores da Argentina a festejar ostensivamente na cara dos rivais e com Messi, que já tinha feito um festejo que evocou contas antigas com Van Gaal, em modo bully a disparar na direção do treinador que saiu da reforma para liderar a Laranja por uma última vez, interrompendo pelo meio a «flash-interview» para se atirar a Weghorst: «Qué mirá, bobo?»

A Liga no mapa e Enzo, o menino de ouro

Os benfiquistas Enzo Fernández e Nico Otamendi puseram Portugal pela primeira vez no mapa dos países que deram campeões ao Mundial, ambos protagonistas da conquista da Argentina. Otamendi foi totalista a par de Emiliano Martínez e Messi, o líder da defesa e referência da «velha guarda», como ele disse. E Enzo foi a revelação que começou a suplente e ganhou o lugar perante a evidência da qualidade que os adeptos portugueses ficaram a conhecer desde os primeiros toques com a camisola do Benfica. O menino de 21 anos que cresceu no River Plate a idolatrar Messi e se mudou para a Luz neste verão assumiu a titularidade ao terceiro jogo, já depois de ter marcado um grande golo quando saiu do banco frente ao México. A partir daí, tomou o lugar na base do meio-campo argentino, jogou cada minuto dos quatro jogos até ao título e acabou a receber o troféu de melhor jovem do Mundial.

Papel? Qual papel?

Faltavam 20 minutos para o fim na última jornada do Grupo D, a Austrália vencia por 1-0 e a Dinamarca precisava de reagir. Fez entrar dois avançados e um deles, Robert Skov, levava um pedaço de papel, que passou a Eriksen. O papel acabou no chão e foi apanhado por Mitch Duke, que o levou ao banco australiano. Dois minutos mais tarde, o treinador dos «Socceroos» mandou sair um médio e fez entrar o defesa Bailey Wright. A Dinamarca acabou eliminada, a Austrália seguiu em frente e o selecionador Graham Arnold acabou a gozar o prato. Disse que nem olhou para o papel, que iria sempre responder ao reforço do ataque da Dinamarca com mais um defesa porque tem sempre um plano A, B, C e D, ao contrário do adversário. «Mostrou-me que eles não tinham um plano. Se têm de andar a enviar notas aos jogadores, é porque não estava planeado antecipadamente.» Bom, seja como for, o facto é que esta nem foi a primeira vez que a Austrália pôs a mão em cábulas do adversário. Andrew Redmayne e a garrafa do guarda-redes do Peru no play-off de acesso ao Mundial, soa familiar?

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