Falta um mês e meio para começar o primeiro Campeonato do Mundo no inverno, apenas uma das muitas singularidades da competição no Qatar. Há muitas questões em torno do Mundial 2022 e é sobre elas que poderá ler no Maisfutebol ao longo das próximas semanas, sob a forma de perguntas e respostas.

Para começar, recordamos como foi a atribuição do Mundial ao Qatar, bem como as suspeitas, acusações e investigações de corrupção que envolveram e continuam a envolver o processo, já lá vão 12 anos. 

Quando é que foi decidido que o Mundial seria no Qatar?

A decisão foi tomada a 2 de dezembro de 2010 pelo Comité Executivo da FIFA, numa ocasião inédita que atribuiu em simultâneo a organização de dois Mundiais consecutivos, 2018 e 2022. Havia nove candidaturas e ao longo do tempo o processo encaminhou-se para separar as decisões por continentes. Para 2018 só havia candidatos europeus: Rússia, Inglaterra, mais as candidaturas conjuntas de Espanha e Portugal e Países Baixos e Bélgica. Para 2022 apresentaram-se propostas do Qatar, Coreia do Sul, Japão, Austrália e Estados Unidos.

Como foi a votação?

O Mundial 2018 foi atribuído à Rússia ao fim de duas rondas, com 13 dos 22 votos possíveis. A candidatura ibérica foi segunda, com sete votos, seguida de Países Baixos/Bélgica (2) e de Inglaterra, que não passou à segunda ronda. Quanto a 2022, houve quatro rondas de votação e no fim ganhou o Qatar, por sinal com menos votos na segunda ronda do que na primeira. Acabou por vencer com 14 votos, à frente dos Estados Unidos, com oito. O Mundial era atribuído a um dos mais pequenos estados do mundo e também dos mais prósperos, graças ao petróleo. O Qatar tinha então pouco mais de dois milhões de habitantes e tem um clima desértico e altas temperaturas médias. Por essa altura, ainda estava previsto que o Mundial se realizasse no verão. O país que nunca tinha estado num Mundial -  só se estreará mesmo em 2022 - propunha-se construir de raiz estádios ultramodernos e usava como argumento público de candidatura os benefícios do inédito alargamento do Mundial ao Médio Oriente ao mundo árabe. Ainda antes da decisão, o presidente da FIFA, Joseph Blatter, já tinha defendido que estava na altura de o Mundial ir para um país árabe.

Quem votou?

Bom, logo à partida menos gente do que era suposto. Em vez dos 24 membros do Comité Executivo, votaram apenas 22. As suspeitas de corrupção começaram ainda antes da votação. Dois membros do Comité Executivo, o nigeriano Amos Adamu e o taitiano Reynald Temarii, foram suspensos e impedidos de votar depois de uma reportagem do Sunday Times ter revelado que se dispuseram a vender o seu voto. O mesmo jornal também falava de suspeitas de um conluio para a troca de votos a envolver a candidatura ibérica e a do Qatar, o que foi negado pelos responsáveis portugueses e espanhóis e alvo de uma investigação da FIFA, que concluiu não existirem indícios desse acordo. Na altura o presidente da Federação portuguesa era Gilberto Madaíl, que não integrava o Comité Executivo da FIFA e não participou por isso na votação.  

Quando surgiram as suspeitas de corrupção?

Como já vimos, surgiram cedo. A partir daí sucederam-se, revelando antes de mais uma complexa teia global de troca de interesses e benefícios. Logo em 2011, o presidente da Confederação Asiática, o qatari Mohammed bin Hammam, foi banido pela FIFA, acusado de tentar comprar votos para a sua candidatura à presidência do organismo, ele que foi preponderante na candidatura do seu país ao Mundial 2022. Era o primeiro membro daquele Comité Executivo formalmente sancionado. Com o passar do tempo, mais de metade daqueles 22 homens seriam acusados pela justiça ou suspensos por corrupção em vários processos. As suspeitas em relação ao Mundial 2022 sucederam-se ao longo dos anos, entre denúncias de subornos de vários membros do Comité Executivo ou ofertas de investimento a troco de votos, misturadas com influências políticas. O próprio Blatter referiu-se a «influências políticas» na decisão, ele que ainda em 2013 chegou também a dizer que a atribuição do Mundial ao Qatar foi um «erro», por causa das condições climatéricas. Em 2013, o jornal France Football falava em envolvimento do próprio presidente francês, Nicola Sarkozy, num almoço com Michel Platini, então presidente da UEFA, e o emir do Qatar, dias antes da votação. Esse encontro está na origem de uma das investigações judiciais em curso.   

Que investigações houve?

A investigação mais abrangente e sobre a qual existe mais informação foi desencadeada pelas autoridades norte-americanas e ainda decorre. Foi a pedido dos Estados Unidos que em maio de 2015 a polícia suíça entrou num hotel de Zurique e procedeu à detenção de sete dirigentes da FIFA, ali reunidos para o congresso que reconduziu Joseph Blatter na presidência. No total foram detidas quatro dezenas de pessoas, numa investigação a suspeitas de enriquecimento ilícito, gestão danosa e lavagem de dinheiro no processo de atribuição dos Mundiais 2018 e 2022, associada a uma outra investigação mais alargada a corrupção no futebol internacional, partindo de suspeitas que remontavam ao início dos anos 90 de extorsão, fraude e lavagem de dinheiro relacionadas com contratos de marketing e direitos televisivos. É este último processo que tem avançado de forma mais significativa. Na justiça suíça há ainda vários processos relativos à FIFA pendentes. Em França decorre a investigação a suspeitas de corrupção associada ao tal encontro com Sarkozy, que em 2019 levou à detenção para interrogatório de Michel Platini.

E que fez a FIFA?

A FIFA anunciou uma investigação em 2012 para apurar várias suspeitas de corrupção, entre elas as dos Mundiais 2018 e 2022, e para a liderar convidou um procurador norte-americano, Michael Garcia. No final de 2014, a FIFA revelou apenas um resumo desse relatório. O Comité de Ética do organismo não via provas de corrupção e encerrou o caso. Garcia demitiu-se. O relatório completo seria divulgado três anos mais tarde pela FIFA, depois de o jornal alemão Bild revelar que o tinha em sua posse. Entre muitos dados a indiciar rasto de dinheiro incerto, doações suspeitas e documentação desaparecida, bem como a criticar desde logo a atribuição conjunta dos dois Mundiais, mais «propícia» a conluios, recomendava que fossem investigados vários elementos associados à votação. Em 2015, depois do escândalo que levou a uma série de detenções de dirigentes, a FIFA suspendeu vários dos envolvidos. Em 2017, após a demissão e suspensão de Joseph Blatter, bem como de Jerome Valcke, o antigo secretário-geral também implicado em suspeitas de corrupção, e já com Gianni Infantino como presidente, a FIFA anunciou que tinha entregado os dados da sua averiguação interna sobre 2018 e 2022 às autoridades judiciais.

Quem foi acusado?

Em abril de 2020, quando juntou ao mega-processo novas acusações a executivos e a uma empresa de marketing desportivo, a procuradoria de Brooklyn, Nova Iorque, incluía explicitamente a acusação de que vários antigos dirigentes da FIFA, todos réus nesse processo, teriam recebido subornos em troca de votos na atribuição dos Mundiais 2018 e 2022, na primeira associação direta na justiça a corrupção naquela votação. Mais uma vez, a Rússia e o Qatar reagiram negando as acusações. Desses dirigentes, já faleceu o paraguaio Nicolas Leoz, bem como Julio Grondona, o ex-presidente da Federação argentina que também era acusado no processo. Os outros são Ricardo Teixeira, ex-presidente da CBF, e Jack Warner, ex-presidente da Concacaf, que não foram até agora julgados. Houve já duas condenações em tribunal associadas ao processo mais alargado de corrupção e não diretamente à atribuição dos Mundiais. Recentemente a procuradoria norte-americana revelou que a acusação, que envolve essencialmente antigos dirigentes da FIFA oriundos do continente americano, resultou até agora, além das condenações, em 27 declarações de culpa individuais mais quatro de empresas. As investigações à corrupção associada a dirigentes da FIFA levaram também a vários outros processos, nomeadamente o que envolveu Joseph Blatter e Michel Platini na justiça suíça. Eram acusados de corrupção, relacionada com um pagamento de 1.8 milhões de dólares, e foram absolvidos em julho deste ano.

Este é o único Mundial envolto em suspeitas de corrupção?

Não. Elas têm sido recorrentes. Desde logo, o Mundial 2018 também está envolvido em grande parte das suspeitas que dizem respeito ao Qatar. Com algumas nuances, como o facto de Michael Garcia ter sido impedido de entrar na Rússia para a sua investigação, ou de terem sido destruídos os computadores que continham documentação relativa à candidatura. Também houve suspeitas em relação ao Mundial 2010, que envolveram Jerome Valcke, ex-secretário-geral da FIFA. E ao processo de atribuição do Mundial 2006, num caso que chegou a julgamento na Suíça, tendo por réus três antigos dirigentes alemães mas não Franz Beckenbauer, que também era suspeito mas não foi levado a tribunal por razões de saúde. Esse processo acabou por ser encerrado sem sentença, por ter entretanto prescrito.