O Mundial terminou para a Selecção portuguesa exactamente da mesma maneira como começou. Com um pesadelo estranho, fantasmagórico e irrepetível. A derrota por 1-0 com a Coreia, tal como a ocorrida frente aos Estados Unidos, deixa, para além da amargura resultante do dobre a finados para um sonho com 11 anos, uma estranha sensação de irrealidade.

Não é possível perceber no imediato o alcance e o sentido de 90 minutos tão pontuados por golpes de teatro. Apetece começar pelo fim, pelo capítulo mais gore do filme de terror produzido em Incheon, para atribuir ao destino, ao azar, à fatalidade as culpas pelo sucedido. Mas é demasiado simples, mesmo que a bola no poste de Sérgio Conceição, a defesa providencial do guarda-redes coreano ao seu remate cruzado, ou a incrível escorregadela de Nuno Gomes a meio metro do golo da salvação sejam as últimas e mais fortes imagens da derrota.

A verdade, é que até chegarmos aí, muitos outros episódios ajudaram a escrever uma História amarga, que encerra abruptamente uma página na História do futebol português. Até aos 27 minutos, quando a expulsão de João Pinto lançou a exibição portuguesa para um abismo sem retorno, tudo estava a decorrer como o previsto. O embate com o ímpeto desabrido dos coreanos, sustentados por um público do outro mundo e por uma condição física verdadeiramente arrepiante, estava a ser gerido com a segurança possível.

A cabeça perdida de João Pinto

Se é certo que até aí Portugal nunca conseguiu assentar jogo e apoderar-se da bola, pelo menos a organização defensiva estava perfeita, como o demonstra o facto de a Selecção coreana só ter, até aí, conseguido dois remates, por sinal perfeitamente inofensivos. Mas as apertadas e duras marcações que amarravam os criativos portugueses eram um dado importante. As sucessivas faltas que travavam as tentativas de Figo, João Pinto ou Sérgio Conceição minavam a paciência e a lucidez dos portugueses? Assim parecia, de facto, mas nada faria prever, muito menos justificar, a destemperada entrada de João Pinto sobre Park Ji Sung, que motivou um justo vermelho directo, sem razão para os protestos desabridos que se seguiram.

Incompreensível, tanto mais que as condições exteriores corriam de feição a Portugal. A pressão do público perdera impacto após os primeiros minutos, o mesmo acontecendo com o pressing desabrido dos homens de Hiddink, gradualmente mais recuados. Portugal parecia ter condições de domar o vulcão, tanto mais que a Polónia, jogando pelo orgulho, marcara cedo dois golos que, derrotando os americanos, colocavam virtualmente portugueses e coreanos na segunda fase.

A expulsão de João Pinto criou um instante de indecisão, logo resolvido com o pragmatismo cínico que a contabilidade recomendava. Portugal - que pouco depiois teve a sua única oportunidade do primeiro tempo, numa fuga de Pauleta mal concluída sobre a trave (34 m) - decidiu limitar-se a gerir os acontecimentos, abdicando de qualquer iniciativa que pudesse pôr em risco a posse de bola. Dito de outro modo, os dez minutos que antecederam o intervalo foram futebol entre parêntesis, com a Coreia, nada pressionante, a aceitar tacitamente a gestão de interesses comuns.

Afinal ainda havia jogo

Podia recear-se que o segundo tempo prolongasse esse estado de coisas até ao infinito. Mas não, a Coreia, novamente empolgada pelo público, lembrou-se que tinha um homem a mais e voltou a intensificar a pressão. Em apenas cinco minutos, viram-se mais remates à baliza do que em todo o primeiro tempo. A boa notícia era que a Selecção portuguesa, mesmo com Figo totalmente manietado, parecia apta para aguentar a crise. E, aos 61 minutos, passou mesmo muito perto do golo, com uma vistosa cabeçada de Pauleta detida in extremis pelo guarda-redes coreano.

Havia jogo, havia Portugal, faltava uma nova e decisiva intervenção do sobrenatural para precipitar a derrocada. Beto, muito exposto por algumas faltas cometidas na primeira parte, chegou atrasado a um drible de Lee Young Pyo, que se deixou cair, teatralizando um derrube que não chegou a acontecer. O segundo amarelo, e consequente expulsão, desfez o equilíbrio precário que a Selecção conseguira encontrar na tempestade. E a substituição determinada por Oliveira - trocando um Pauleta muito disponível para o sacrifício e para a marcação por Jorge Andrade, abriu a porta para o que se seguiu.

Quinze minutos de heroísmo inútil

Cinco minutos depois, explorando um inevitável buraco na defesa, após um canto, Park Ji Sung marcou, desfazendo todos as possibilidades de cálculo que até aí se mantinham em aberto. Com dois homens a menos, com a qualificação a fugir pela porta dos fundos, a Selecção tinha de ser heróica. Foi-o.

Enquanto António Oliveira acusava o desnorte - a substituição de Rui Jorge por Abel Xavier foi um exercício de inutilidade - os jogadores uniam-se à voz de comando de Fernando Couto, Jorge Costa e Sérgio Conceição. Um livre de Figo, a centímetros do poste, foi o tiro de partida para os mais épicos e inglórios 15 minutos deste Mundial. Com Baía a fazer milagres lá atrás, a cada contra-ataque adversário, eram oito portugueses a fazer das fraquezas forças, a forçar os coreanos a encolher-se, a cometer erros, a conceder oportunidades. Abrevie-se o filme de terror: o golo passou perto, demasiado perto e demasiadas vezes. Mas nunca chegou.

A derrota, a eliminação, e o fim de um ciclo para boa parte destes jogadores foram a única consequência de um jogo impossível de esquecer. Voltamos ao princípio, antes de os próximos dias abrirem as portas à discussão: o destino foi o último personagem a entrar em cena, mas não necessariamente o principal protagonista de uma superprodução de terror.

O árbitro argentino Angel Sanchez, cúmplice passivo da dureza coreana dos primeiros minutos, teve como já foi dito um erro-chave para a história do jogo, ao mostrar o segundo cartão amarelo a Beto, num lance em que o defesa português não chegou a derrubar Lee Young Pyo.