O mundo despede-se de Kobe Bryant, entre a comoção e o choque pelo desaparecimento brutal de um dos maiores de sempre. Entre tantas reações, tão sentidas, o contraste foi ainda maior com os meios oficiais dos LA Lakers. Nas longas horas que se seguiram à tragédia, as redes sociais e o site do clube de sempre de Kobe optaram pelo silêncio. Que pesou muito mais que milhares de palavras, nestes tempos. Como se tivessem parado no tempo, antes de Kobe ter desaparecido, ele e Gianna, a filha de 13 anos que seguia as pisadas do pai. A primeira reação foi um comunicado a negro, já noite de segunda-feira em Portugal, a anunciar o adiamento do jogo desta terça-feira com os La Clippers e a agradecer o respeito pela dor, por parte de quem também era família dele.

Kobe viajava na manhã de domingo com outros pais e colegas de Gianna. A queda do helicóptero em que seguiam na região de Calabasas, perto de Los Angeles, vitimou as nove pessoas que iam a bordo. E deixou o mundo a tentar lidar com a brutalidade da notícia: Kobe Bryant morreu, aos 41 anos.

Desapareceu o ídolo das várias gerações que cresceram a vê-lo e a admirá-lo ao longo de duas décadas com a camisola dos LA Lakers, que o viram conquistar cinco títulos de campeão, ser eleito 18 vezes para a equipa «All Star» e tornar-se o terceiro melhor marcador de sempre da NBA, passando Michael Jordan, a sua referência de sempre. Essa marca foi superada na noite de sábado passado por LeBron James, com a camisola dos Lakers. E a última mensagem de Kobe nas redes sociais é para dar os parabéns ao antigo companheiro, que também o idolatrou quando crescia.

«O maior Laker de todos os tempos»

«O maior Laker de todos os tempos.» Quem o disse foi Magic Johnson, o que dá toda a medida da afirmação. As camisolas 8 e 24, aquelas que vestiu em Los Angeles, foram retiradas quando ele terminou a carreira, em 2016. A relação dele com a equipa e a cidade manteve-se, uma ligação única. Agora fica a memória, do talento e do espírito de Kobe, forjados num percurso diferente da esmagadora maioria dos jogadores da NBA.

Kobe passou a infância em Itália, para onde se mudou aos seis anos com o pai, Joe Bryant, antigo jogador da NBA, e onde viveu sete anos. Rieti foi o primeiro destino da família e foi lá que Kobe começou a acompanhar o pai aos treinos, e a impressionar quem o via. O clube recordou assim esses primeiros tempos.

O miúdo de «talento puro» em Itália e as cassetes do avô

As memórias desse tempo são de um miúdo já especial. «O Kobe seguia o Joe para todo o lado e já era apaixonado por basquetebol», contou agora Gioacchino Fusacchia, antigo treinador das camadas jovens do Rieti, ao LA Times. «Dizer que o treinei é exagero. Deixávamo-lo jogar, porque ele era mais novo que os outros miúdos da equipa, mas dava para ver que ele era um talento puro, um espírito livre», explica, recordando em especial um torneio em que Kobe participou: «Não passava a bola a ninguém e, por ser tão melhor que os outros, tirámo-lo de campo para restaurar algum equilíbrio. O Kobe correu para a mãe a chorar, porque pensava que estava a ser castigado, e no fim demos-lhe o prémio de melhor jogador do torneio.»

Joe Bryant jogou em vários clubes, o último dos quais a Reggiana, que também recordou esses tempos. E Kobe cresceu num ambiente especial, que o moldou. Também no que diz respeito ao instinto competitivo e à ambição, contou em tempos numa entrevista a Shaquille O’Neal recordada agora pela CNN em que dizia que o facto de em Itália, nos jogos entre miúdos, ser o único afro-americano e ser visto como «outsider» o motivou ainda mais a mostrar que podia ser melhor que os outros.

A ambição e a competitividade que sempre foram a sua imagem estavam lá e a vontade de aprender com os melhores também. Com a ajuda do avô, que lhe mandava cassetes vídeo de jogos da NBA para Itália, cresceu a aprender como se fazia. E copiou o melhor que viu, assume. «Roubei todas as minhas jogadas aos melhores jogadores», disse em 2010.

Do liceu para a NBA

A família voltou aos Estados Unidos quando Kobe tinha 14 anos e foi estudar e jogar para o liceu de Lower Merion, nos arredores de Philadelphia. O impacto foi imediato, ainda caloiro entrou para a equipa do liceu e bateu recordes atrás de recordes. E decidiu que seguiria dali diretamente para a NBA.

A ambição foi vista com desconfiança por olheiros e responsáveis da Liga, mas a auto-confiança de Kobe era inabalável. «Sei que tenho de trabalhar mais e sei que é um grande passo. Mas eu consigo», disse, citado pela NBA.

E assim foi, um dos raros casos de jogadores da NBA que não passaram pelas universidades. Recrutado pelos Charlotte Hornets como 13ª escolha do draft de 1996, chegaria aos Lakers por troca com Vlade Divac. Ainda era menor e os pais tiveram de assinar também o contrato. Jerry West, o lendário ex-jogador, treinador e dirigente dos Lakers, foi o responsável pela troca e não teve dúvidas: «Era de longe o jogador mais talentoso que conseguimos. Não era um miúdo de 17 anos, ponto final.»

O resto é história, primeiro dos tempos de adaptação e depois da consagração, com a chegada de Phil Jackson a Los Angeles e o «three-peat», os três títulos de campeão seguidos, de 2000 a 2002. Sempre de olhos postos no topo. Michael Jordan, que na hora da despedida lhe chamou o seu «irmão mais novo», era a grande referência de Kobe, a medida dos seus limites. Phil Jackson recorda no seu livro «Eleven Rings» um episódio exemplar: «O Kobe estava obcecado em passar Jordan como o melhor jogador de sempre. A obsessão dele pelo Michael era óbvia. Quando jogámos em Chicago na época 1999/2000, arranjei um encontro entre os dois, pensando que o Michael talvez ajudasse a derivar a atitude do Kobe para maior foco no trabalho de equipa. Depois de se cumprimentarem, as primeiras palavras do Kobe foram: ‘Sabes que consigo dar cabo de ti no um para um’.»

Black Mamba, a alcunha para recuperar o controlo

A carreira de Kobe passou por grandes momentos, mas também teve pontos baixos. O principal teve a ver com a sua vida pessoal e uma acusação de violação, em 2003, depois de uma relação que ele defendeu ter sido consensual. O caso não chegou a ir a julgamento, por a mulher ter recusado testemunhar em tribunal, tendo terminado com um acordo no processo cível. Toda a polémica em torno do caso mudou Kobe. É daí que vem a alcunha que ele inventou para si próprio, a procurar recuperar o controlo da vida e da carreira: Black Mamba, cobra particularmente veloz e venenosa, inspiração que lhe surgiu ao ver o filme «Kill Bill», de Quentin Tarantino,. «Não sei o que teria acontecido se não tivesse feito isto, porque todo o processo para mim era tentar perceber como lidar com isto. Temos responsabilidades: famílias, filhos, equipa, a cidade inteira, nós próprios, como é que se ultrapassa isto?», disse em 2018 numa entrevista ao Washington Post.

Kobe festejou ainda mais dois títulos de campeão, em 2009 e 2010. Pelo meio o primeiro título olímpico, em 2008. Voltaria a ganhar o ouro em Londres, quatro anos mais tarde, antes de um período marcado por lesões que se arrastaram e acabaram por tornar inevitável o adeus. A despedida foi em abril de 2016, numa noite histórica em que marcou 60 pontos e que foi contada na primeira pessoa no Maisfutebol.

A vida de Kobe continuou, bem para lá do basquetebol. Sempre teve horizontes largos, ele que era também um fã de futebol, gosto herdado da sua formação europeia. Primeiro adepto do Milan, mais tarde do Barcelona. Entre a família e os negócios, tinha uma vida cheia. Premiada também fora de campo. A curta metragem Dear Basketball, baseada num poema que escreveu para o Players Tribune a anunciar o fim da carreira, ganhou um Óscar em 2018.

As palavras dessa despedida são eternas. «Estou pronto para te deixar partir. Quero que saibas agora, para ambos podermos saborear cada momento que ainda temos juntos. O bom e o mau. Demos um ao outro tudo o que temos. E ambos sabemos, faça eu o que fizer a seguir, que serei sempre aquele miúdo com as meias enroladas, o caixote de lixo no canto, 5 segundos no relógio, bola na mão. 5…4…3…2…1»