LeBron James ainda não tinha nascido naquele dia 5 de abril de 1984, quando Kareem Abdul-Jabbar recebeu a bola de Magic Johnson e, com um skyhook, o lançamento que era a sua assinatura, se tornou o melhor marcador de sempre da NBA. Foi o dono do recorde durante quase 39 anos e agora King James está a 36 pontos de reclamar também essa coroa. Provavelmente também por muitos anos. Este é um marco que ele perseguia e que completa a sua lenda. Mas ele vai continuar por aí. Aos 38 anos, James continua a um nível altíssimo e não pensa em parar. Ainda quer, um dia, jogar ao lado do filho.

À medida que LeBron acelera, com números incríveis neste início de 2023, para superar um dos recordes mais míticos e duradouros da história do desporto, cresce a expectativa sobre o momento em que finalmente ele vai passar os 38.387 pontos. E dispara o preço dos bilhetes para ver história acontecer ao vivo. Vêm aí dois jogos dos LA Lakers em casa - na madrugada de terça para quarta-feira recebem os Oklahoma City Thunders e dois dias mais tarde, de quinta para sexta-feira, seguem-se os Milwaukee Bucks, ambos a partir das 3h00 em Portugal continental. Se por alguma razão LeBron não bater o recorde até aí, segue-se uma visita aos campeões Golden State Warriors, na noite de sábado.

Para o jogo com os Thunders, o preço médio dos bilhetes no mercado de revenda é de 1152 dólares, 390 por cento acima do valor fixado no início da época regular, nas contas da CBS. O mais barato está nos 291 dólares. Custa ainda mais conseguir um bilhete para a partida com os Bucks, média de 1302 dólares por bilhete. Nos sites de revenda de ingressos atingem-se valores astronómicos para os exclusivos lugares junto ao campo, qualquer coisa como 250 mil dólares.

Também havia grande expectativa naquela noite de abril de 1984, para ver Abdul-Jabbar superar os 31.419 pontos do anterior recorde, que era de Wilt Chamberlain. Faltavam-lhe quatro pontos à entrada para o último período do jogo em casa dos Utah Jazz, lotado com mais de 18 mil espectadores nas bancadas. A notícia do New York Times daquele jogo conta que os companheiros passaram esse período «a procurá-lo em cada oportunidade». Quando finalmente ele marcou os dois pontos que superaram o recorde, a 8m53s do fim, o jogo parou. «É difícil dizer alguma coisa depois de tudo ter sido dito e feito», disse Abdul-Jabbar ao microfone, a segurar a bola, antes de agradecer à família e, conta o Times, terminar com uma citação islâmica, que traduziu de seguida: «Quer dizer Deus vos abençoe e guarde a todos.»

Abdul-Jabbar: recordista, ativista e «sem relação» com LeBron

Abdul-Jabbar tinha 36 anos e aquela era a sua 15ª época na NBA. O gigante de 2.18m que nasceu no Harlem, em Nova Iorque, tinha-se tornado grande ainda no basquetebol universitário como Lew Alcindor, o seu nome de nascimento, que mudou em 1968, quando se converteu ao islamismo. Ganhou o seu primeiro título na NBA em 1971, ao fim da segunda época nos Milwaukee Bucks. Após cinco temporadas mudou-se para os LA Lakers, onde se tornou um ícone, numa carreira coroada com mais cinco títulos e um sem fim de recordes. Despediu-se em 1989, com o máximo de 38.387 pontos, seis anéis de campeão e mais uma série de marcas históricas: seis vezes MVP da NBA, mais do que qualquer outro até hoje, 19 vezes All Star, marca apenas igualada por… LeBron James.

Aos 75 anos, Abdul-Jabbar continua a ser uma referência eterna, pelo que fez no campo e fora dele. A par da carreira na NBA, foi sempre uma voz ativa na luta pelos direitos civis. Recusou participar nos Jogos Olímpicos de 1968, numa tomada de posição contra a desigualdade racial - no ano do assassinato de Martin Luher King -, escreveu livros e crónicas e continua a ter opinião recorrente em questões raciais ou de religião. A NBA criou um prémio com o seu nome para jogadores que se destaquem pela luta pela justiça social.

Abdul-Jabbar vai estar presente nos jogos em que LeBron deverá bater o seu recorde, segundo noticiou esta semana a Reuters. E diz que ficará bem entregue. «Transporto a tocha como recordista há 38 anos. Estou entusiasmado e aliviado por a passar ao próximo que a mereça. O LeBron mereceu-o e espero que a transporte por ainda mais tempo do que eu», disse à CNN.

A declaração passa por cima de uma relação que está longe de ser amigável entre os dois. Abdul-Jabbar falou várias vezes sobre James em tom crítico, nomeadamente por LeBron ter começado por defender que a vacinação contra a covid-19 era uma decisão individual e desvalorizado a doença. Em setembro, James foi frio quando lhe perguntaram sobre o que pensava quanto a bater o recorde e quanto à sua relação com Abdul-Jabbar: «Nem ideias, nem relação.»

Como mudou a vida do miúdo de Akron

LeBron já assumiu posições públicas contra o racismo e várias outras questões, mas o seu principal foco de ativismo social está na educação. Ele criou logo em 2004 uma fundação, sedeada em Akron, Ohio, onde nasceu a 30 de dezembro de 1984. Através da instituição, presta apoio à comunidade, promove bolsas para estudantes e em 2018 associou-se ao lançamento de uma escola pública para crianças em risco. Esse é um tema que lhe diz muito, a ele que foi uma dessas crianças.

Filho de mãe adolescente - tinha 16 anos quando ele nasceu -, e de um pai que nunca fez parte da sua vida, James viveu os primeiros anos sem residência fixa e sem ir regularmente à escola, até ser acolhido pela família de Frank Walker, treinador de futebol americano nos tempos livres que chegou a acordo com a mãe de James para que o miúdo tivesse a estabilidade de que precisava. Isso mudou a sua vida. «Eles faziam-me levantar todos os dias para ir para a escola. Fazer parte de uma família, um ambiente com mãe e pai, um irmão e duas irmãs, foi uma experiência incrível para mim. Abriu-me os olhos para me tornar aquilo que sou hoje», diz James no livro «LeBron James: the making of na MVP».

«A Decisão», os títulos e as outras decisões

LeBron tinha 11 anos quando começou a jogar basquetebol organizado e foi a estrela da companhia desde os primeiros anos no liceu St Vincent-St Mary. Dos olheiros da NBA aos grandes meios de comunicação, a fama do talento de Akron espalhou-se rapidamente, um fenómeno de popularidade precoce como nenhum outro. Aos 17 anos foi capa da Sports Illustrated, no final do liceu foi a primeira escolha do draft de 2003 para jogar «em casa». As sete temporadas nos Cleveland Cavaliers, com dois títulos de MVP e sete presenças nos All Star, construíram a lenda. Mas era curto para James.

No verão de 2010 ganhou o estatuto de «free agent» e encenou a mudança com pompa, num programa especial, em direto na ESPN. «The Decision». «Neste outono vou levar os meus talentos para South Beach e jogar nos Miami Heat», disse: «Quero ganhar campeonatos.»

A decisão foi recebida com muitas críticas, mas James conseguiu o que queria em Miami: foi campeão em duas épocas consecutivas, 2012 e 2013. Ao fim de quatro temporadas, de novo com o futuro nas mãos, decidiu voltar a Cleveland. E conseguiu então, na segunda temporada, levar os Cavs ao primeiro título da sua história em modo épico, numa final para a lenda frente aos Golden State Warriors.

Em 2018, voltou a mudar. Desta vez escolheu os LA Lakers, uma equipa bem longe da glória de outros tempos, mas onde mais uma vez conseguiria reunir os parceiros e o contexto para voltar a ganhar. O quarto título de LeBron chegou em 2020.

Agora, o foco imediato é no recorde de Abdul-Jabbar. «É um dos maiores recordes do desporto em absoluto», diz: «É um daqueles recordes que se pensa que nunca seria batidos.» Por isso, ele quer batê-lo.

Até hoje, apenas sete jogadores marcaram mais de 30 mil pontos na NBA. Entre os cinco que lideram a lista, só Michael Jordan tem melhor média que LeBron. A lenda que venceu seis títulos com os Chicago Bulls é também quem tem menos jogos, numa carreira interrompida pelas duas retiradas temporárias, entre outubro de 1993 e abril de 1995 e entre janeiro de 1999 e outubro de 2001.

Abdul-Jabbar atingiu o recorde em 20 épocas e precisou de mais jogos do que James. Mas se nos lembrarmos que, ao contrário de LeBron, ele jogou quatro épocas a nível universitário, só podemos imaginar em quantos pontos teria fixado o recorde, se as tivesse passado na NBA.

O terceiro na lista de todos os tempos é Karl Malone, o «Carteiro» que fez toda a carreira nos Utah Jazz, antes de se despedir com uma temporada nos Lakers, sem nunca ter sido campeão. E entre eles está ainda Kobe Bryant, também ele no fim de uma longa carreira vivida em exclusivo com a camisola dos Lakers, marcada por várias pausas prolongadas por lesão.

Os cinco jogadores com mais pontos de sempre

O que este recorde representa na discussão sobre o melhor de sempre será sempre um debate em aberto. Mas agora LeBron vai cimentar ainda mais o seu legado. Chegar a estes números é seguramente o resultado de uma combinação única de talento, regularidade e longevidade.

LeBron tem isso tudo, e não dá sinais de abrandar. Aos 38 anos, ele continua a um nível impressionante. Esta é a sua terceira melhor época de sempre em média de pontos, 30.1 por jogo. Chegou aos 38 mil pontos a 15 de janeiro e uns dias mais tarde subiu ao quarto lugar da lista de jogadores com mais assistências da história, quando atingiu a marca de 10.336. Era sétimo no início da época.

«O meu último ano vai ser jogado com o meu filho»

James não deixa nada ao acaso e investe muito na sua condição física, com uma equipa particular de preparadores, fisioterapeutas e nutricionistas. Quer estar aí para durar. «Não vou a lado nenhum. Ainda vou andar nesta Liga pelo menos por mais uns anos», disse no final de janeiro.

Ele tem outra meta, bem mais pessoal. «O meu último ano vai ser jogado com o meu filho. Onde o Bronny estiver, é onde eu vou estar. Faço o que for preciso para jogar um ano com o meu filho. Nessa altura já não se trata de dinheiro», disse ao The Athletic.

Bronny, o filho mais velho de LeBron, fez 18 anos em outubro e está no final do seu percurso no liceu. É um base promissor e acaba de ser um dos 24 selecionados para o jogo All Stars da McDonalds, reservado a finalistas do secundário. Tal como o pai, há 20 anos. Ainda não anunciou a universidade que irá seguir e ainda é cedo para perceber onde chegará. Mas a história promete.