«O Brasil é um país de futuro... e sempre será»
(Stefan Zweig, escritor)


«O Brasil tem um longo passado pela frente»

(Millor Fernandes, cronista)


«Os cariocas têm de ganhar a vida como toda a gente, mas nunca a perderam por causa disso»
(Alexandra Lucas Coelho, jornalista e escritora, in 'Vai, Brasil')


«Futebol não se aprende na escola/É por isso que brasuca é bom de bola»
(Gabriel, o Pensador)


«O Brasil está a preparar o Mundial dos Mundiais e os melhores Jogos Olímpicos da história»
(Dilma Rousseff, Presidente do Brasil)


«Não estou preocupado com os atrasos nas obras. A FIFA tem confiança total nas autoridades locais e a Taça das Confederações mostrou que a segurança funcionou. O Mundial no Brasil vai ser um sucesso»
(Joseph Blatter, presidente da FIFA)


A menos de quatro meses do arranque do Mundial-2014 (será a 12 de junho, em São Paulo, no Arena Corinthians), tudo faria apontar para que estivesse a chegar a hora do Brasil.

O discurso dos últimos anos apontava para um crescimento sólido num clima de euforia. Os anos Lula tiraram milhões de brasileiros da pobreza. A taxa de crescimento era muito maior do que nas economias estagnadas da UE e mesmo dos EUA.

A atribuição da Copa de 2014 e, pouco depois, da organização dos Jogos Olímpicos Rio-2016 pareciam provar que tinha mesmo chegado o momento da festa brasileira.

Deus, afinal, pode não ser brasileiro


«O Papa é argentino, mas Deus é brasileiro», brincava, ainda na fase da euforia, a presidente Dilma Rousseff, quando em março de 2013, no Vaticano, os cardeais apontavam Bergoglio como o primeiro Papa da América Latina.

O Brasil prosperava, já era a sexta maior economia do Mundo, caminhava em passos largos para o «top5» dos mais ricos.

Ao falar-se da «ascensão dos outros», os analistas políticos e económicos faziam consenso em colocar o Brasil na «shortlist» dos mais fortes dos emergentes, a par da Índia, China e à frente da Rússia.

O futuro vestia de verde e amarelo.

Mas algo mudou nesta narrativa de «milagre», que quase parecia provar o divertido ditado que Dilma aplicara para amenizar a desilusão que alguns brasileiros sentiram na escolha do Papa.

Arrefecimento, desilusão, contestação

O primeiro choque com a realidade foi a Confederações. A contestação estalou nas ruas e tomou proporções assustadoras, apanhando todos (autoridades policiais e políticas, incluídas) completamente de surpresa. Desprevenidos.

O arrefecimento da economia brasileira, ocorrido em poucos meses, transformou um crescimento pujante num aumento anémico.

O governo Dilma teve que fazer cortes, governos estaduais tiveram que aumentar impostos. A questão do preço dos transportes em São Paulo foi a gota de água que fez transbordar o copo.

Em poucos dias, o discurso brasileiro passou da euforia ao medo. Da vaidade à perplexidade.

O que estava a acontecer?

De repente, a «geração facebook» tomou a rua. Protestou. Reivindicou.

Exigiu que o «Padrão FIFA», de custo elevado, comodidade e excelência, fosse aplicado não só nos estádios da Copa, mas também nos hospitais e nas escolas. Nos acessos, nos transportes, nas universidades. No saneamento. E, sinal de maturidade, insurgiu-se contra a corrupção.

O brasileiro adora futebol, sim. Mas o povo, afinal, o que quer mesmo é pão, dignidade e saúde. E festa, claro. Mas primeiros essas três coisas.

Ninguém esperava. Foram precisos dias para que os ânimos se acalmassem. Dilma tentou ficar do lado do povão. Mas não estava fácil.

E o relógio sempre a contar. Os meses para o arranque do Mundial foram diminuindo no calendário. E os movimentos sociais de protesto nem esconderam o jogo: «Até à Copa, vai ser sempre a crescer».


«Brasil!
Terra boa e gostosa
Da morena sestrosa
De olhar indiscreto
O Brasil, samba que dá
bamboleio que faz gingar
O Brasil, do meu amor
Terra de Nosso Senhor
Brasil! Pra mim, pra mim, pra mim»
(«Aquarela do Brasil», Ary Barroso, com a voz de Gal Costa)



Para piorar o cenário, a relação entre o Comité Organizador Local e a FIFA nunca foi fácil. Blatter foi fazendo de «polícia bom», dizendo que o Brasil é «o país do futebol» e que continua convicto de que «o Mundial no Brasil será um grande sucesso».

Mas nas visitas aos estádios e às cidades-sede, o «polícia mau», Jérôme Valcke, secretário-geral da FIFA, agravava o tom dos avisos.

Será que alguma cidade vai mesmo ficar de fora? Os atrasos nos estádios continuavam, o projeto do Arena da Baixada em Curitiba foi começando a receber cada vez mais «linhas vermelhas». Sobre as «obras de mobilidade» nas cidades-sede, bom... é melhor nem ir por aí: muitas nem sequer arrancaram.

Quer dizer: êxito organizativo, modelo de logística, o Brasil-2014 já não será com toda a certeza. O acidente em novembro passado no «Itaquerão», com queda de guindaste a provocar duas mortes no estádio da abertura do Mundial-2014, foi o canto do cisne para quem ainda tinha expetativas nessa área.


«Isso aqui oh oh...
É um pouquinho de Brasil, iá iá.
Deste Brasil que canta e é feliz
Feliz, feliz...
É também um pouco de uma raça
Que não tem medo de fumaça, ai ai...
E não se entrega não»
(«Isso aqui o que é», Moraes Moreira, com a voz de Caetano Veloso)



A perspetiva em relação à Copa é grande, sim. Mas fazer o maior megaevento desportivo da era moderna num país como o Brasil tem um risco talvez ainda maior do que a FIFA imaginou.


«Futebol? futebol não se aprende na escola
No país do futebol o sol nasce para todos mas só brilha para poucos
E brilhou pela janela do barraco da favela onde morava esse garoto chamado brasuca
Que não tinha nem comida na panela mas fazia embaixadinha na canela e deixava a galera maluca
Era novo e já diziam que era o novo Pelé
Que fazia o que queria com uma bola no pé
Que cobrava falta bem melhor que o Zico e o Maradona e que driblava até melhor que o mané
Pois é
E o brazuca cresceu, despertando o interesse em empresários e a inveja nos otários
Inclusive em seu irmão que tem um poster do Romário no armário»

(«Brasuca», letra e interpretação de Gabriel, o Pensador)




Por muito que pareça que está a caminhar para o abismo, olha-se para o Brasil e percebe-se que ele não cabe lá.

A violência nas ruas volta a ser problema, mesmo em zonas que pareciam mais seguras do Rio ou São Paulo. A inflação nas maiores cidades é preocupante, os preços têm vindo a subir nos últimos meses e, como cada vez mais se diz por lá, «imagina na Copa».

Mas é também verdade que o Brasil está, hoje, muito melhor do que estava há 20, 15, ou mesmo 10 anos.

Estudo do PNUD, feito em julho de 2013, não deixa qualquer dúvida quanto a isso: em 1991, o Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil tinha a nota «muito baixo». Duas décadas depois, merece um «Alto»: um crescimento de 47,5% (!) da qualidade de vida dos brasileiros em 20 anos.

Crescimento, já houve. Falta agora o equilíbrio social e o combate aos desvios e à corrupção política e económica.

«O paraíso não é aqui»

A frase, que define muito bem as contradições do país do samba, sol, futebol e violência, é retirada de um subtítulo do livro «Vai, Brasil», de Alexandra Lucas Coelho.

Editado, em novembro de 2013, pela «Tinta da China», conta a experiência da jornalista e escritora, que mora no Rio de Janeiro desde dezembro de 2010.

Para percebermos tamanhas contradições deste Brasil-quase-quinta-economia-mundial, que organiza a Copa este ano e os Jogos do Rio em 2016, mas que continua com níveis assustadores de violência urbana, criminalidade e assimetrias, vale a pena lermos Alexandra (os destaques a negro são meus).

«(...) Stefan Zweig, esse judeu que em plena ascensão do nazismo teve uma epifania ao viajar pelo Brasil. Foi ele quem proclamou aquela maldita bendição: país do futuro. Sempre que o futuro parecia vir, não vinha. Os brasileiros pagaram caro tornarem-se um só povo num imenso território com fronteiras estáveis. Pagaram com a vida, descendo da morte nos sertões para a morte nas favelas. Qualquer desejo era contra as evidências em contrário, comida, terra, liberdade ou música, e desse desejo se alimentou o Brasil. Quando a soma de tanto desejo encontra o seu momento tudo parece acontecer. Viver o Brasil agora é uma exposição a essa energia, trespassa o corpo como trespassa a língua. Sendo eu portuguesa, há nisso um sentido político construído pelo passado. Mas o futuro do passado começa neste exato momento: a identidade não se perde, está em movimento» (pgs. 47/48).

«Todos os dias me pergunto como qualquer carioca daqueles milhões que ganham pouco mais que o salário mínimo faz para viver. Um amigo português que foi para França nos anos 60 escreveu-me a dizer que se tivesse 20 anos hoje viria para o Brasil. Nunca tanta gente me disse que o Brasil agora é o centro de tudo. Tirando ser um escândalo conseguir sobreviver por cá, eu própria se tivesse 20 anos hoje viria para o Brasil. Este é o Inverno em que o Brasil coincide com a História. (...) Convulsão: câmara do Rio ocupada, estudantes na rua, professores na rua, manifestações diárias, o prefeito apresando-se a entrar na era 'hangout' do debate popular, em direto através da net. Entretanto, nos bairros chiques continuam as grades, os porteiros, os quartos de empregada, a empregada uniformizada, as guaritas com segurança privada. E a classe dita média acha normal alugar pequenos apartamentos por 1500 euros. Não falo da quadra da praia, é vista para o prédio em frente, mesmo. Não imaginem na Copa» (pgs 311/312).

Violência e crescimento. Contestação e prosperidade. Risco e promessa. Passado e futuro.

Vai, Brasil!

«O nome dele é zé batalha
E desde pequeno ele trabalha pra ganhar uma migalha que alimenta sua mãe e o seu irmão mais novo
Nenhum dos dois estudou porque não existe educação pro povo no país do futebol
Futebol não se aprende na escola
É por isso que brasuca é bom de bola

Brasuca é bom de bola
Brasuca deita e rola
Zé batalha só trabalha
Zé batalha só se esfola
Brasuca é bom de bola
Brasuca deita e rola
Zé batalha só trabalha
Zé batalha só se esfola

Chega de levar porrada
A canela tá inchada e o juiz não vê
Chega dessa marmelada
A camisa tá suada de tanto correr
Chega de bola quadrada
Essa regra tá errada, vamo refazer
Chega de levar porrada
A galera tá cansada de perder

No país do futebol quase tudo vai mal
Mas brazuca é bom de bola, já virou profissional
Campeão estadual, campeão brasileiro
Foi jogar na seleção, conheceu o mundo inteiro
E o mundo inteiro conheceu brazuca com a dez
Comandando na meiúca como quem joga sinuca com os pés
Com calma, com classe, sem errar um passe
O que fez com que seu passe também se valorizasse
E hoje ele é o craque mais bem pago da Europa
Capitão da seleção, tá lá na copa
Enquanto o seu irmão, zé batalha,
E todo o seu povão, a gentalha
Da favela de onde veio, só trabalha
Suando a camisa, jogado pra escanteio
Tentando construir uma jogada mais bonita do que a grama que carrega na marmita
Contundido de tanto apanhar
Confundido com bandido, impedido
Pode parar!!

Sem reclamar pra não levar cartão vermelho
Zé batalha sob a mira da metralha de joelhos
Tentando se explicar com um revólver na nuca:
Eu sou trabalhador, sou irmão do brazuca!
Ele reza, prende a respiração
E lá na copa, pênalti a favor da seleção
Bola no lugar, brazuca vai bater
Dedo no gatilho, zé batalha vai morrer
Juiz apitou... tudo como tinha que ser:
Tá lá mais um gol e o brasil é campeão
Tá lá mais um corpo estendido no chão»

(«Brasuca», letra e interpretação de Gabriel, o Pensador)


«Nem de propósito» é uma rubrica de opinião e análise da autoria do jornalista Germano Almeida. Sobre futebol (português e internacional) e às vezes sobre outros temas. Hoje em dia, tudo tem a ver com tudo, não é o que dizem?