Dez anos. Há dez anos o Benfica jogava em Guimarães com a mesma ambição de sempre: vencer. A equipa de Camacho procurava quebrar a hegemonia do Porto de Mourinho e o plantel dava garantias de que era possível lutar. Naquele dia 25 de janeiro chuvoso de 2004, o D. Afonso Henriques não estava cheio, o jogo de domingo à noite era transmitido pela televisão. Ninguém suspeitava o que poderia acontecer (também eu estava no estádio a fazer reportagem para o Maisfutebol).

Quando tudo já parecia resolvido, com o golo de Fernando Aguiar aos 90 minutos, Miklos Feher cai inanimado no relvado e tudo o resto foi diferente. O jogo terminou, a vida acabou, a imagem captada pelo Luís Vieira para a Reuters ainda hoje não nos sai da cabeça.


Mais do que remexer nas memórias relativas ao trágico acontecimento, vale a pena perceber o que mudou no desporto, mais concretamente na medicina desportiva, para que a morte súbita cardíaca não volte a acontecer nos estádios portugueses. Outros morreram subitamente em terrenos desportivos depois de Feher, mas para além da ciência e de algumas iniciativas legislativas, há ainda muito a fazer para que estas imagens sejam cada vez mais raras.

Não existe um levantamento oficial de atletas vítimas de morte súbita no desporto em Portugal. Aliás, esta é uma prática corrente em quase todos os países, excluindo dois grandes estudos, que identificaram a origem das mortes, realizados nos Estados Unidos e em Itália. No nosso país não existe uma entidade que reúna os dados, que centralize a informação, que faça a ligação entre o Laboratório anti-dopagem, a Medicina Legal, o Centro de Medicina Desportiva e as autoridades policiais, tentando perceber as reais causas da morte, que muitas vezes ultrapassam os problemas congénitos e podem estar inclusivamente relacionadas com o doping ou o puro risco depois de serem ignorados avisos. 
 
A nível internacional só a FIFA ousou revelar alguns dados, durante o congresso do ano passado: entre 2007 e 2012 morreram 84 atletas durante partidas que faziam pelos seus clubes, com uma média de idades de 24,9 anos. Os responsáveis médicos do organismo máximo do futebol também aproveitaram para avisar que só em 55 por cento dos jogos existe um desfibrilhador pronto a entrar em ação. Nos treinos, a situação piora de figura: apenas 28 por cento dos centros de treino possuem aquele equipamento de salvação. 

 
Existe uma sensação de que acontecem mais mortes deste género no futebol, mas isso sucede porque é a modalidade com mais praticantes e também a que merece maior atenção mediátiaca. Não existe uma especificidade no futebol, dado que toda a prática desportiva vigorosa pode desenvolver o «coração de atleta», com diminuição da frequência cardíaca, crescimento cardíaco no tamanho e no peso e que pode ser confundido com doença cardíaca estrutural nos Eletrocardiogramas e nos Ecocardiogramas. Só com uma constante observação é possível despistar estes casos. A incidência anual de morte súbita cardíaca nos jovens atletas varia entre um a três por cada cem mil pessoas, acontecendo em 80% dos casos durante a prática desportiva e em 20% após o exercício.

Dez anos depois da tragédia de Feher as práticas mudaram e a bateria de exames exigida aos atletas aumentou. Todos os atletas federados têm de fazer um exame médico desportivo anual, com especial interesse na deteção de contraindicações e pesquisa de antecedentes familiares de patologia cardíaca, que poderão indiciar um risco acrescido para o candidato. O electrocardiograma obrigatório permitirá despistar cerca de 65% de patologias de natureza cardíaca e o ecocardiograma alarga a taxa para os 90%.

Cardiomiopatia hipertrófica, a principal causa

Foi esta a causa da arritmia que matou Feher, segundo os registos constantes no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de junho de 2011. É, aliás, a causa responsável mais frequente de morte não violenta de pessoas jovens (menos de 35 anos), previamente sem sintomas. Segundo exeplica o cardiologista João Freitas, «na CMH as paredes do coração estão espessadas e esta hipertrofia pode reduzir o volume do coração, dificultando a ejeção do sangue que sai do ventrículo esquerdo (o que bombeia o sangue para o corpo). Com o aumento da frequência cardíaca durante a atividade física, existe também maior exigência de sangue para os músculos e cérebro. Num coração com cardiomiopatia, esta combinação de exigência aumentada e diminuição da ejeção de sangue pode conduzir a um problema de falta de fornecimento de oxigénio ao músculo cardíaco que por sua vez é anormal o que leva frequentemente também a uma alteração de ritmo cardíaco, frequentemente fatal».

A cardiomiopatia hipertrófica é herdada dos pais em cerca 50% dos casos e pode manifestar-­se a qualquer hora, sem aviso prévio, desde o período pré­natal até cerca da terceira década. Os atletas portadores de CMH com maior risco de morte súbita são os que possuem história familiar de morte súbita e que na sua história pessoal têm perdas de consciência prévia e aqueles cuja pressão arterial não sobe durante o esforço.

Os atletas que normalmente morrem durante prática desportiva de recreio ou competição parecem estar em condição físicas excelentes. De facto, «em cerca de 75% destes casos, nem o atleta nem a família se apercebe de qualquer problema de saúde», frisa o especialista. As as vítimas de morte súbita frequentemente possuem certos factores de risco, como:
- História familiar de: Morte súbita em idade jovem (antes dos 50 anos); Doença de coração; Perdas de consciência (síncopes);
- História pessoal prévia de: Tontura ou perda de consciência durante exercício ou precedida de palpitações (síncopes), dor torácica durante o esforço. Palpitações associadas ao esforço.
- Biótipo com corpo alto e longilíneo, com articulações laxas
- Electrocardiograma anormal, sendo um exame fundamental de screening.

Rastreio tem de ser mais eficaz

Este termo (sreening) é entendido como fundamental pelos especialistas e grande parte da aposta das entidades oficiais tem residido neste ponto. É utópica a pretensão de um rastreio que identifique a totalidade dos atletas em risco. «A única forma de evitar a morte súbita é fazer todos os exames que existem para que depois sejam vistas por profissionais qualificados e com vasta experiência na área», explicou Fonseca Esteves, ex-diretor do Centro Nacional de Medicina Desportiva e ainda hoje o médico responsável por analisar os exames cardíacos dos jogadores do Benfica. Ainda assim, existem casos em que a primeira manifestação acontece na morte e aí nada pode ser feito.

Nuno Cardim, responsável pelo registo nacional de miocardiopatia hipertrófica, acrescenta que para além do rastreio também é importante perceber o que justifica uma morte. Nomeadamente para a família. «Costumo dizer que a morte súbita não é o fim da história, mas o princípio. Toda a família deve ficar em alerta, porque estes casos estão na sua maioria relacionados com doenças cardíacas hereditárias», frisa.

Nas situações de risco identificado ou suspeitas de risco recorre-se a métodos de investigação adicional, como o ecocardiograma, registos prolongados de eletrocardiograma, provas de esforço, ressonância magnética, tomografia computorizada, estudo eletrofisiológico, cataterismo cardíaco e o estudo genético. Tudo isto é possível ser feito em Portugal, mesmo que alguns destes exames sejam sofisticados, complexos e muito dispendiosos.