27 de maio de 1987. Finalmente, a final. A noite em que o FC Porto fez do Prater um palco imortal na história do futebol português e tombou o gigante alemão com a Europa e o mundo a abrirem a boca de espanto.

Ali, em 90 minutos, o sonho tornado realidade. «Isto não é um sonho», como gritava Artur Jorge ao intervalo, para acordar o seu séquito de guerreiros da letargia dos primeiros 45 minutos.

A final da Taça dos Campeões Europeus começara, como expetável, com supremacia alemã, consubstanciado aos 24’, num lance azarado de Jaime Magalhães, que desvia de cabeça um lançamento longo de Pfügler.

A bola sobra para Ludwig Kögl, que, aproveitando o desposicionamento de Mlynarczyk, atira de primeira, de cabeça, para o fundo da baliza portista.

«Na primeira parte, eles não criaram grandes oportunidades, tirando aquele golo que foi um bocadinho fortuito: um pequeno toque na minha cabeça em que toda a gente ficou fora do lance e o Jozef (Mlynarczyk) também não estava muito bem situado na baliza», lamenta Jaime Magalhães.

A palestra de Artur Jorge: «Que idade vocês têm?»

O Bayern chegava ao intervalo com vantagem de 1-0, longe de imaginar que a segunda parte seria um vendaval de futebol portista. Foi aí que aconteceu «a» palestra de Artur Jorge.

«Alguns jogadores pareciam esquecidos de tudo o que havíamos passado para ali chegar. No balneário, o Artur Jorge disse: “Que idade vocês têm? Vocês já não têm mais hipóteses de estar numa final. E vão deixar fugir isto? Têm os vossos familiares a ver, a família portista a ver e vocês vão deixar fugir?” Quando ia para o túnel, que era muito comprido, eu engoli em seco e disse aos meus colegas: “Nós vamos ganhar isto”!», recorda André ao Maisfutebol, com Futre a acrescentar a sua versão, contada uma e outra vez, mas com o entusiasmo de sempre:

«O Artur Jorge ganha aquela final com a palestra que dá ao intervalo: “Temos 45 minutos para entrar na história. Isto não é um sonho. É realidade!” Lembro-me que ele tirou o casaco, a gravata, arregaçou as mangas e fez aquela palestra rápida, de quatro, cinco minutos. Tive dois grandes motivadores, dois craques, o Luis Aragonés e o Fabio Capello, mas aquela palestra de Artur Jorge ao intervalo foi única. Foi o grande momento da final. Não foi apenas falar. Para demonstrar que era verdade, lançou logo o Juary. Não era nenhum bluff.»

Juary, hoje no Brasil, ao serviço das camadas jovens do Santos, lembra-se bem desse momento-chave e do «grande psicólogo» Artur Jorge: «Ele simplesmente olhou-nos nos olhos, um a um, e perguntou-nos a nossa idade: “24, 25, 27, 28”. Ele tinha 41. Disse-nos apenas que aquela era a última oportunidade para todos, ele incluído, de ganhar a Taça dos Campeões Europeus. Isso foi decisivo para nós. Na verdade, foi mesmo.»

Capa da revista Dragões

Futre sobre Madjer: do calcanhar ao cabide

Se a primeira parte foi do Bayern, a segunda viria a ser do FC Porto e de uma forma arrebatadora, sobretudo nuns 20 minutos finais dignos de uma epopeia.

Antes disso, Futre bem perto de tocar no céu no mais belo quase golo da sua carreira, descrito ao Maisfutebol pelo próprio:

«Logo no início da segunda parte há uma jogada do Juary, comigo, e começámos a empurrá-los. Mas eles entram mesmo em pânico quando eu faço aquela jogada. Eu tinha vergonha de falar daquele lance, porque foi genial, mas a definição é de jogador do distrital. Eu queria fazer o golo, queria fazer o efeito quando vi o guarda-redes a sair, mas a bola bateu-me no calcanhar e foi na direção do Madjer...»

Com o FC Porto a encostar os alemães às cordas, Artur Jorge continuou a arriscar e tirou o lateral Inácio para lançar o médio António Frasco aos 65 minutos:

«O Artur Jorge chamou-me, pôs-me a mão nos ombros e disse-me: “Vais ali para o lado direito, vais tentar penetrar no um contra um, tentar depois cruzar ou fazer um passe. Tentar criar superioridade na área do Bayern.” E isso veio a acontecer. Peguei na bola, fui para cima do adversário, ultrapassei-o e por milésimos de segundo, porque o defesa do Bayern quase cortava a bola, consegui passar. O Juary remata para a baliza, a bola sobra e o Madjer faz um golo fantástico que vai ficar sempre para a história do nosso clube e do futebol mundial. Na altura pensei logo: “Se este sacana falha, vamos cair-lhe em cima!”»

Ao contrário de outros jogadores em campo, como João Pinto ou Jaime Magalhães, que não se aperceberam da finalização e só veriam o golo pela televisão em casa, André apercebeu-se da genialidade de Madjer: «Um fora de série, como ele, é assim que faz as coisas. As pessoas pensam que ele complica, mas simplifica. Se calhar, se dá de primeira não fazia golo. Ele estava habituado a fazer aquilo nos treinos. Quando a bola lhe sobra para o calcanhar pensei logo: “Vai fazer golo…” Se virem o lance, o Pfaff (guarda-redes do Bayern) ele estava filado que ele ia rematar de primeira e como ele era muito rápido dentro dos postes se calhar ia lá defender. Mas o Madjer deixou-o cair, fez com convicção.»

À descrição de Frasco e André, Futre acrescenta os elogios a Madjer: «Foi o jogador que mais me impressionou, o mais completo, mesmo tendo eu jogado contra o Maradona. Fiquei sem ar quando o Madjer fez aquilo», conta o prodígio montijense, que segue embalado, como quando saia de um pique para driblar os adversários, segue para a descrição do segundo golo portista, que não tardaria, aliás.

Dois minutos depois daquele calcanhar para a eternidade, Madjer está junto à linha lateral a ser assistido por Rodolfo Moura, a bola joga-se do outro lado do campo quando é dada ao argelino ordem para entrar no terreno. O resto do lance, bem, aqui o melhor é «passar a bola a Futre» para uma descrição que 30 anos depois faz reviver aquela noite de Viena:

«No segundo golo… Estás a ver o defesa? O Madjer recebe do Celso e finta o defesa direito (Winklhofer). Ele não cai, mas aqueles rins… Dizia aos meus filhos que o Madjer lhe tinha metido um cabide nas costas. Rebentou-lhe nos rins todos! Foi por lá fora, fez um cruzamento genial e o Juary encostou. Sentimos nesse momento que a vitória não ia fugir. Aquele segundo golo “matou-os”.»

A resistência lusa: «Não me importo de ficar sem dentes, quero é ganhar!»

Não «matou» de imediato, diga-se, até porque faltavam dez minutos e uns pozinhos de longa resistência lusa. Faltava o FC Porto segurar a vantagem e aguentar a reação do favorito Bayern, na iminência de perder a final.

«O Bayern a partir do momento em que se encontrou a perder começou a jogar direto no Hoeness, que é enorme. Estávamos tranquilos. Dos jogos que fiz pelo FC Porto foi dos que estive mais calmo. Mas o que queria fazer era sempre por a bola mais longe da área. Há alturas em que bato mesmo à defesa; para longe, apenas, sem preocupação de dar a um colega», salienta Eduardo Luís.

André, porém, teve até ao «último minuto a sensação de que o jogo não estava ganho», até porque, desde a saída de Inácio para a entrada de Frasco, teve de recuar para o eixo da defesa com a missão ingrata de marcar o imponente Hoeness:

«Quando o mister tirou o Inácio, passou o Eduardo Luís para lateral esquerdo e eu para central com o Celso. Eles tinham o Hoeness, de 1,92 metros e eu disse logo: “Celso, tu marcas este alto, meu...”. Mas ele: “Não André, eu estava a marcar o outro, já conheço o outro, marca tu esse.” e eu fiquei: “Como é que me vou desenrascar com este gajo… Eu olhava para ele [faz o gesto de olhar para cima] e ele só me mostrava o cotovelo. Eu agarrava-o, encostava-me a ele, tentava de tudo. Olhava para o relógio e... Dez minutos para acabar. “Oh minha mãe. Como é que me vou safar disto?”. E ele só me mostrava o cotovelo, como que a dizer-me que me ia rebentar. Mas disse-lhe: “Não me importo de ficar sem dentes, quero é ganhar! Quero lá saber que me dês. Vais expulso e sem ti ainda temos mais facilidade em ganhar” [risos]», conta António André, pai do médio portista André André, com a raça de um caxineiro de corpo e alma.

André à conversa com o Maisfutebol e a TVI

Depois da arte, o sacrifício, até o apito final do árbitro belga Alexis Ponnet ecoar no Prater.

A partir dali, uma celebração que o futebol português já não vivia desde a década de 1960. Muitos jogadores, nem se aperceberam plenamente da façanha que acabavam de alcançar. Como Juary, o primeiro brasileiro a marcar numa final europeia, por exemplo: «Quando acabou o jogo nem fiquei no relvado a festejar, fui logo para o balneário. A ficha só me caiu quando já estávamos a caminho do Porto.»

Depois, a festa no relvado e aquela mítica taça das orelhas grandes, sinónimo de reinado no futebol europeu, presa às mãos do capitão João Pinto.

Aconteceu há 30 anos, a 27 de maio de 1987, num tempo em que o futebol tinha reminiscências de valsa e os gritos de «Porto!» soavam ao «Danúbio Azul».