«O meu pub em Hammersmith». A esta zona da cosmopolita Londres chega gente de todo o mundo. Enquanto se bebe uma pint, fala-se de desporto: futebol, basquetebol, ténis, Fórmula 1, o que for. Depende de quem passa pela porta. O consumo é obrigatório e as bebidas nunca são por conta da casa. Aqui também se pode falar da NFL, mas se alguma vez se proferir a palavra «soccer», Woody, o cozinheiro, tem cara de Vinnie Jones e andou na escola do Cantona. Ah, e é primo do Roy Keane.

No ecrã, ao canto, a final da Taça do Rei. Barcelona e Real Madrid, em mais um duelo extraordinário. No meu computador, ao balcão, enquanto há uma pausa nos pedidos, chat de uma rede social, a aproximar os que estão longe, a recordar. 

Há os amigos com quem estamos e há ainda aqueles com quem não estamos, mas que, como os primeiros, podemos contar sempre. O André é um destes. Está longe, é um facto, mas volta e meia lá se mete a conversa em dia. Muitas vezes por aqui penso no que tenho a quilómetros de distância, no que lá está, no que lá ficou. Para além do André, uma das coisas que ficou na terra foi o basket.

Gosto de basquetebol desde que me lembro. A sério, faz parte da minha vida como a minha irmã , os meus pais, os meus amigos mais velhos. E eu tenho muitos amigos mais velhos. Aliás, houve uma altura, ali pelos tempos da universidade, em que quase «só» tinha amigos mais velhos.

Claro que os outros existiam também. Os da minha idade e alguns mais novos. Mas eu saía com os mais velhos. E foi com os mais velhos que joguei, pela última vez, basquetebol federado, uns bons anos antes. 

Reparem, por essa altura, eu não só era mais novo do que eles, como, entre os do meu próprio escalão, era dos mais baixos. E isso no basquetebol conta, ainda para mais quando se fala na formação. Aliás, conta no basquetebol, como no andebol e no futebol. Não é revelação para ninguém, apenas estou a sublinhar o facto.

Por altura do meu quinto/sexto/sétimo ano o meu ritual era quase sempre o mesmo. Principalmente nos dois primeiros anos deste período. Era dia de escola e saía de casa com uma bola amarela e roxa, dos Lakers. 

Eu até nem gosto dos Lakers. Nem hoje, nem nunca, mas ofereceram-me a bola e o primeiro pretexto para a levar para a escola todos os dias, a passá-la por debaixo das pernas, da mão esquerda para a direita, da porta de casa até à sala de aulas foi este: gastá-la até não se ver o símbolo de LA. A cor, essa, tinha de aguentá-la. Menos mal.

Claro que aquele exercício diário me fez evoluir no drible. Se não crescia para cima, tinha de crescer nalguma coisa para jogar com os mais velhos.

Por essa altura, também ainda não tinha aperfeiçoado o lançamento. Era uma questão de força, apenas. Ou seja, eu era mais baixo e mais fraco do que aqueles com quem jogava. Driblava bem, não tinha mau lançamento. Mas de que me servia o drible para entrar numa defesa com bastantes mais centímetros do que eu, ainda para mais com ajudas defensivas de gente ainda maior que o meu adversário direto? Tinha de ser, no mínimo, tão inteligente como eles.

Por isso, andei quase uma época inteira a passar a bola.

Como é óbvio, eu não fazia parte do cinco inicial de uma equipa que era mais velha, mais experiente, mais alta e mais forte do que eu. Ainda para mais o base era o André. O André não era o mais alto da equipa, mas era, seguramente, o melhor jogador.

Eu quase só jogava quando o André precisava de descansar. Ou saía com cinco faltas, o que era raro, muito raro. Mas lembro-me da primeira vez que isso aconteceu (única, talvez). Foi em Tondela, num torneio de abertura. Eu já tinha muitos jogos no escalão inferior, mas ali era diferente. Ali, para mim, estavam os melhores do clube, estavam aqueles a quem eu tinha de chegar para ser melhor.

Se chegasse ao nível deles, seria feliz.

Não se enganem, eu até tinha talento. Um rapaz que saía das aulas e ia para o campo de basquetebol fazer jogos até aos cem pontos (pelo menos até descobrir todo essa complexa modalidade que é namorar) estava obrigado a ter alguma habilidade, não

As tabelas pareciam demasiado altas e demasiado distantes para o meu lançamento, ainda assim. Por isso, quando entrei para o lugar do André em Tondela, a minha ideia foi tão clara que ainda hoje a tenho presente: leva a bola para o ataque, passa-a para jogo interior, simplifica.

Obviamente, do outro lado, há outra equipa. E vê um miúdo de metro e meio em campo. Presumo que tenham pensado: dali não vem perigo. E deram-me espaço fora da linha de três pontos.

Tomei, para mim, das melhores decisões da minha vida. Recebi a bola e lancei de três pontos...

Foi como se tivesse ganho o Euromilhões, a Lotaria, a Liga dos Campeões e a final da NBA no mesmo momento. 

O desconto de tempo que se seguiu para o adversário permitiu que os meus colegas, e amigos, me erguessem como um gigante.

Um momento em campo torna-se tão maior quanto o gritas.

Na minha mente, ainda hoje grito aquele minuto, que se condensou desde que pisei o campo até que a bola entrou.

Para todos os outros que estavam no pavilhão aquilo não foi nada, nem se lembram, claro, mas para mim foi um momento para a eternidade. Ficou na minha mente como «o triplo de Tondela», por muito absurdo que isso lhe possa parecer a si, que está a ler.

O comentador do Barcelona-Real Madrid desta última final da Copa do Rei classificou-a, ali no imediato, como «a final do triplo de Lull».

Quando chegar ao fim do vídeo, vai dar razão ao comentador. Não lhe vai parecer absurdo, porque era uma final de uma taça, frente ao rival histórico e pelas circunstâncias dos 60 segundos anteriores.

São poucos os que, como Lull, ficam na história grande de uma modalidade, de um jogo, de uma rivalidade.

São poucos os que atingem a glória.

Mas isso da glória é sempre relativo, não é?

A glória é uma coisa que cada um tem de entender para si próprio. Para mim, na minha adolescência, a glória era caminhar de igual entre gigantes de 15 anos.

Para si, se calhar, continua a ser absurdo, eu sei. 

Mas vão lá dizer isso à minha memória.  

O meu pub em Hammersmith» é um espaço fictício e de opinião do jornalista Luís Pedro Ferreira. Pode segui-lo no Twitter.