O desporto na televisão mudou há 50 anos. No dia em que os espectadores norte-americanos viram Rollie Stichweh marcar um «touchdown» em direto e, segundos depois, o viram fazer exatamente o mesmo. Era a repetição do lance e, adivinhando a surpresa, o relator do jogo sentiu necessidade de explicar. «Isto não é direto, senhoras e senhores. Army não marcou outra vez.»

Foi a primeira repetição imediata registada da história do desporto. Uma única, naquele jogo Army-Navy, o encontro anual de futebol americano entre as academias de West Point e Annapolis. O homem que a conseguiu pôr no ar, Tony Verna, chamou-lhe «instant replay» e tornou-se famoso.

A televisão andava à procura de formas de mostrar melhor o espectáculo do desporto. Já tinha havido no Canadá uma experiência para tentar repetir lances de jogo e dois anos antes, nos Estados Unidos, a ABC tinha desenvolvido um método para mostrar as jogadas em câmara lenta. Mas eram sempre repetidas mais tarde, normalmente ao intervalo.

Mas Tony Verna, um então jovem realizador da CBS, foi mais longe. Ele tinha andado a matutar naquilo, numa forma de melhorar a experiência dos espectadores, no tempo em que quem pestanejasse num momento importante perderia mesmo o que se tinha passado em campo. «O motivo para qualquer invenção é uma necessidade, e eu precisava de algo para melhorar a minha transmissão, porque as pessoas ainda não estavam a receber o evento completo, a causa e efeito de um jogada, a ver por outro ângulo.»

Escolheu o jogo Army-Navy de 7 de dezembro de 1963. Um dos grandes eventos desportivos dos Estados Unidos nesse tempo, antes de haver Super Bowl, que tinha sido adiado por uma semana naquele ano por causa do assassinato de John F Kennedy, a 22 de novembro.

O contexto nos Estados Unidos não era para grandes diversões e a CBS não quis fazer alarido com o que Verna se propunha fazer. «Não queriam que eu fizesse nada que fosse irreverente. Não queriam fazer alarido à volta do jogo.»

«Vais fazer o quê?»

Foi portanto de forma tão discreta quanto possível que Verna fez chegar ao estádio de Filadélfia naquele dia uma máquina da sala de controlo da CBS em Nova Iorque que pesava mais de uma tonelada. Apenas revelou o seu plano na manhã do jogo a Lindsey Nelson, que iria relatar o jogo. «Vais fazer o quê?»

O plano de Verna passava por um sistema que recorria a sinais sonoros para identificar pontos numa cassete e cujo sucesso dependia de as três cassetes estarem sincronizadas, para permitir a Verna disparar o lance que pretendia no momento certo. Um dos riscos era emitir a imagem errada, o que seria embaraçoso, tendo em conta que uma das cassetes tinha episódios da novela «I love Lucy», um clássico da televisão norte-americana, por cima da qual o jogo estava a ser gravado.

Não estava fácil sincronizar os sinais. «A cabeça do meio continuava a mostrar «I love Lucy», que era a velha cassete que me tinham dado para gravar por cima. Por isso, víamos ao mesmo tempo, por exemplo, o Roger Staubach, no meu monitor, depois no meio a Lucy e a Desi, e no fundo os jogadores», recordou Verna por estes dias à Foxsports.

«Finalmente, na segunda parte, as três cabeças estabilizaram e ouvi os meus sinais sonoros chegar com a frequência de que precisava. Eu dependia daqueles sinais audio para me dizerem o que estava a acontecer na cassete. Finalmente recebi um sincronizado, ouvi-o e disse ao Lindsey: «É agora.»

A repetição do «touchdown» marcado por Rollie Stichweh passou em velocidade real, o que aumentou a sensação de estranheza. «Naqueles dias não havia câmara lenta e era preto e branco. Não se conseguia distinguir de todo entre a gravação e o direto. Por isso, quando a repetição entrou, foi como um comboio sem travões», descreve Verna.

Apesar do aviso de Lindsey, muita gente ficou baralhada. «As pessoas que viram o jogo na televisão ficaram genuinamente confusas. Muitas perguntaram-me como é que tínhamos marcado outra vez imediatamente a seguir com a mesma jogada», recordava anos mais tarde Rollie Stichweh, o homem que apareceu duas vezes seguidas a marcar um «touchdown» naquele dia.



Não vai poder ver uma repetição dessa repetição. As imagens não sobreviveram. Como aconteceu com as cassetes que Verna usou na altura, provavelmente gravaram-lhe qualquer outra coisa por cima.

Mas logo na altura houve a noção de que naquela régie se tinha feito história. «Ainda estava no ar quando o Tex Schramm, que era então diretor-geral dos Dallas Cowboys, me ligou para o carro – ele era o tipo que me contratou em miúdo para a CBS – e disse: ‘Verna, não sabes o que fizeste. Isto vai ser fantástico para arbitrar jogos.’ Era algo em que eu não tinha pensado.»

Pouco depois Bill McPhail, o diretor da CBS Sports, ligou a Verna a dizer-lhe que tinha de partilhar a sua descoberta com os outros realizadores e produtores da estação, conta a Fox. Verna também relata que lhe disseram da redação como lamentavam que a sua tecnologia não existisse duas semanas antes, quando precisaram de 11 minutos para repetir as imagens de Jack Ruby a disparar sobre Lee Harvey Oswald, o homem que tinha sido detido pelo assassinato de John Kennedy.

A partir daí a tecnologia generalizou-se. E foi-se refinando. Acrescentou-se a câmara lenta, o ângulo inverso, uma série de variações e de olhares adicionais. Mas a repetição imediata é o recurso que faz a diferença. 

A tecnologia, os árbitros e as dúvidas

Hoje ninguém consegue imaginar ver desporto sem ela. Seja quem faz televisão seja quem vê. «É quase uma evidência o que acrescentou às transmissões televisivas», diz ao Maisfutebol o realizador português Ricardo Espírito Santo: «As repetições são a ferramenta que proporciona um espectáculo mais rico.»

As repetições passaram a servir, e muito, para tirar dúvidas. Tony Verna não pensou nisso na altura, mas o diretor dos Cowboys, um homem da televisão mas também do desporto, viu logo esse potencial. Ajudar os árbitros, esclarecer lances. «A primeira evidência do que acrescentou às transmissões tem a ver com o esclarecimento, com o contributo para a verdade do jogo», constata Ricardo Espírito Santo.

Alguns desportos levaram mesmo as repetições para dentro do jogo. Nos Estados Unidos todos os grandes desportos profissionais a usam como recurso para ajudar os árbitros em algumas decisões. No futebol o debate continua sobre a mesa, enquanto se avança com outros meios tecnológicos para ajudar às decisões dos árbitros.



As repetições e os recursos tecnológicos podem acrescentar muito, mas Ricardo Espírito Santo também deixa um aviso ao excesso de entusiasmo. «Com a introdução de novas tecnologias vai passar a ser outro jogo. Os que apoiam a introdução desenfreada de novas tecnologias não estão a ver o impacto que terá sobre o jogo.»

Esta conversa das repetições para ajudar a tirar dúvidas sobre decisões relevantes para o jogo dá pano para mangas. Para Ricardo Espírito Santo, que tem duas décadas de experiência em transmissões desportivas, horas e horas a mostrar futebol, a obsessão com as repetições para tirar teimas sobre decisões do jogo – se foi falta, se foi mão, se foi penálti – é redutora.

«Identifico-me muito com a forma de encarar este desporto definida pela UEFA. Tem a ver com aquilo em que eu acredito. Sim, a televisão e as repetições estão lá para esclarecer, mas não para chafurdar. Nós mostramos uma repetição onde se mostra que o árbitro até ajuizou mal. Mas não precisamos de mostrar cinco vezes. Fui árbitro quando era novo e sei bem que é muito complicado ajuizar.»

Além de que, nota, nem a televisão consegue dar sempre a certeza. Depende de muita coisa, a começar pelos meios disponíveis. «Em Portugal, por exemplo, fazemos transmissões com muito menos meios do que nos grandes campeonatos.»

Mas há tanto mais para mostrar, diz. Expressões, jogadas, fintas, pormenores. «É através das repetições que podemos valorizar o que o jogo tem de bonito e mostrar coisas que têm a ver com a finalidade da televisão, trabalhar a emoção.»

Espírito Santo traz a visão de quem está na régie e quer mostrar mais do que aquilo que se vai discutir no dia seguinte. E acrescenta um dado que faz pensar. É que, falando de futebol, a própria lógica do jogo dificulta essa tarefa.

«Regra geral, só quando o jogo para é que podemos dar uma repetição. Mas quando há uma jogada bonita, uma finta, um túnel, como o jogo não para, podemos ter que esperar. É terrível saber que temos planos fantásticos mas que não temos oportunidade para mostrar. É um bocadinho perverso, nesta acepção.»

Mas é também aí, diz, que uma boa transmissão se distingue. «Direto todos fazem. As repetições é que podem fazer a diferença. A gestão das oportunidades que o jogo dá é que faz a diferença. Eu tento aproveitar o mais possível e aproveito para aí 30 por cento. O que é uma dor de alma.»

Fehér, ou o que vemos e o que não vemos

Quem vê futebol não pensa nisso com muita frequência, mas joga-se tanto ali, na régie. Cada plano, cada imagem que vemos. E que não vemos. Ricardo Espírito Santo era o realizador do V. Guimarães-Benfica de 25 de janeiro de 2004. Foi ele quem decidiu, no momento em que viu Miklos Fehér cair e percebeu o que se estava a passar, que não iria mostrar o rosto do jogador do Benfica.

«O que eu disse foi: ‘Quero toda a gente fora da cara.’» A decisão foi imediata, numa fração de segundo. «Deve ter a ver com valores que a pessoa tem. Eu não pensei naquilo. Mas nunca pus outra hipótese.»

A decisão, que valeu ao realizador um louvor da Alta Autoridade para a Comunicação Social e elogios de críticos e gente do meio, foi esta: «Nunca mostrámos o Fehér. Fomos tentar contar a história na cara dos outros protagonistas. Foi o mecanismo de defesa que encontrámos para não mostrar o Fehér. Mesmo assim, as expressões das pessoas em campo eram muito fortes. Era como se cada plano queimasse.»