Quando esta história começa, no verão de 1962, Pelé é o melhor jogador do mundo e o Brasil - branco, negro e mulato - acabou de reconquistar o título de campeão mundial. Eusébio tornou-se em maio o homem do momento no futebol europeu, numa equipa que tinha Mário Coluna como líder e referência. E no entanto, excluindo os países com tradição colonial, para grande parte dos adeptos europeus a ideia de ver um jogador negro a representar a sua equipa era exótica, na melhor das hipóteses. Ou uma aberração, na pior.

Em Itália, por exemplo, desde o primeiro campeonato, em 1898, que não havia registo de jogadores negros, à exceção do uruguaio La Paz, um mulato claro com breve passagem pelo Nápoles, nos anos 40. Essa era uma realidade prestes a mudar, por influência brasileira. Além do convincente sucesso de Pelé, Didi e companhia no Mundial da Suécia, no início da década de 60, o Milan contava com dois internacionais brasileiros de ascendência italiana, Dino Sani e, principalmente, Altafini que com um bis em Wembley irá, no fim dessa época, impedir o Benfica de conquistar o «tri» europeu. 

São eles a recomendar ao treinador Nereo Rocco um jovem ponta-esquerda de 20 anos, que brilha no Flamengo. Chama-se Germano, José Germano de Sales, mais precisamente. É a terceira opção para a ponta-esquerda da seleção, atrás de Zagallo e Pepe. E falha por muito pouco a convocatória para o Mundial do Chile, depois de se estrear pelo escrete neste particular, contra Portugal, em maio desse ano:



Rocco fica convencido, tanto mais que o talento goleador de Altafini precisa de um criativo que o alimente. Germano desembarca no aeroporto de Malpensa a 8 de julho de 62. Juntamente com Jair (Inter) e Cané (Nápoles), que chegam poucos dias depois, forma o primeiro trio de «pérolas negras» da série A.



Esse é o rótulo mais amistoso na imprensa, já que não demora a aparecer também outro tipo de alcunhas. Para os adeptos, do Milan e dos adversários, Germano torna-se rapidamente o «Bongo-Bongo», o «Branca de Neve» ou simplesmente o «Negretto» (Pretinho). Neste último caso a tradição manteve-se até à atualidade, como o irmão de Silvio Berlusconi demonstrou nesta ocasião, ainda há um ano.

Para todos os efeitos, as primeiras impressões deixadas por Germano são positivas: bisa na estreia internacional, a 12 de setembro, num 8-0 ao Union Luxembourg, primeiro passo da caminhada do Milan para o título europeu. Quatro dias mais tarde, volta a bisar numa estreia, desta vez na Série A, no empate (3-3) com o Veneza, tornando-se duplamente pioneiro: o primeiro negro a jogar e a marcar no campeonato.

E, depois, mais nada: ao fim de cinco jogos a titular, em novembro vê-se afastado do plantel e cedido ao Génova. A sensação desaparece, como neve ao sol. Mas a lenda de Germano Sales não seria lenda se não contasse uma história diferente.

A «Contessina»

Nesse final de verão a chegada de Germano ainda é um dos temas em discussão na sociedade milanesa. Nas imediações do campo de treinos, em Cascina Costa (o centro de Milanello só seria inaugurado um ano depois) há uma escola de equitação, onde jovens e menos jovens da alta sociedade aproveitam para espreitar os jogadores, entre passeios à guia.

É aí que uma rapariga chamada Giovanna festeja, a 18 de setembro, o 17º aniversário. Germano simpatiza com ela, mesmo antes de saber de quem se trata. Chamam-lhe «Contessa», ou «Contessina», e é filha de Domenico Agusta, herdeiro milionário da fábrica de material aeronáutico com o mesmo nome e das motos desportivas MV Agusta.

Exuberante e comunicativo, Germano conquista Giovanna. Ou vice-versa, pouco importa. O caso amoroso cai no domínio público e torna-se tema de conversa nos círculos sociais da cidade, com todas as implicações raciais e de conflito de classes que se pode imaginar. Mas o assunto coincide com o eclipse desportivo do brasileiro e torna-se difícil evitar a má-língua, e distinguir o ovo e a galinha. Frustrados pela perda prematura da coqueluche anunciada, alguns adeptos do Milan avançam com a teoria: Domenico Agusta teria influenciado a direção «rossonera», no sentido de afastar o jogador da cidade, para pôr fim ao romance. Outros preferem ficar-se pela explicação mais simples, avançada pelo treinador: «É bom jogador, mas não se adaptou ao espírito e ao nosso estilo de jogo», resume Rocco quando o extremo parte para Génova.

A carreira de Germano em Itália nunca se recompõe, mas Giovanna Agusta dá mostras de uma personalidade forte e rebelde: continua a acompanhar o jogador sempre que possível, tornando-se presença regular nas revistas do coração. O brasileiro termina o empréstimo ao Génova, volta a Milão, mas não à equipa, tanto mais que em 1964 sofre um acidente de automóvel que lhe fratura o maxilar e o deixa inativo durante vários meses.

Giovanna não desiste e ignora vários ultimatos da família para pôr fim à relação. Espera pacientemente pelo regresso de Germano, quando este parte para o Brasil, em 1965, para representar o Palmeiras.



É nesse período que recupera o seu futebol, e marca o único golo pela seleção, numa vitória por 3-0 sobre o Uruguai. O jogo, insólito, merecia só por si uma história à parte. Mas fiquemos com a versão resumida, contada pela SporTV do Brasil:

Brasil/Palmeiras-Uruguai de 1965 (3-0)


O idílio com o Palmeiras dura pouco: Germano quer voltar à Europa, onde Giovanna espera por ele. Pouco importa que as portas da Série A estejam fechadas, e que o único clube interessado nos seus serviços seja o modesto Standard de Liège. Germano ruma à Bélgica, Giovanna segue-o. Pouco depois de, mais uma vez, ver a família rejeitar a ligação com «il negretto», a «contessa» completa 21 anos e é livre para decidir sozinha. Casa com José Germano de Sales, em Liège, já grávida da filha dos dois, Giovanna Luisa, ou simplesmente Lulu.

O casamento, em 1967


A epopeia do Milan prossegue, com um segundo título de campeão europeu, em 1969, depois do conseguido em 1963. Para Germano, que participou no princípio da odisseia, tudo isso é uma realidade muito distante. O futebol belga não é, nessa altura, o mais entusiasmante e o apelo da vida familiar fala mais alto: em 1968, o antigo extremo-esquerdo, que esteve quase a ser o sucessor de Zagallo no escrete, encerra uma carreira desportiva que se ficou pela promessa.



Dois anos depois, extingue-se também o amor com Giovanna: divorciam-se em 1970, e o industrial italiano, aliviado pelo fim da história, compra ao ex-genro uma propriedade na cidade natal, Conselheiro Pena, em Minas Gerais. É aí, longe dos relvados e das revistas do coração, que vai viver até ser surpreendido por um enfarte, em 1997, com apenas 55 anos. Nunca um jogador com tão escassa presença em campo terá contribuído tanto para mudar a face do futebol italiano.

Soldados desconhecidos é uma rubrica dedicada a figuras pouco conhecidas da história do futebol, com percursos de vida invulgares.