«Para ser sincero, acho que será jogado entre 15 de novembro e 15 de janeiro no máximo». Com esta frase, Jérôme Valcke, secretário-geral da FIFA, relançou a polémica sobre o Campeonato do Mundo do Qatar que será disputado, em 2022, dentro de oito anos. Uma solução que tem vindo a ganhar força e que permitiria arrefecer a questão do intenso calor que se faz sentir no verão no pequeno emirado, com temperaturas a rondar os 50 graus centígrados, mas que abre uma outra bem mais complicada: como encaixar o Mundial no apertado calendário europeu sem desestabilizar as competições domésticas e as taças europeias?

A frase provocou um «burburinho» na Europa e obrigou a FIFA a vir a público serenar ânimos. «A data precisa do evento ainda está sujeita a um processo de consulta que evolve todos os parceiros, incluindo a comunidade do futebol (FIFA, Confederações, Federações, Ligas, clube e jogadores), bem como os parceiros comerciais (patrocinadores e detentores dos direitos de media)», esclareceu a FIFA. Uma questão que vai ser bem mais complicada de resolver do que todas as polémicas que têm surgido desde que Joseph Blatter anunciou, a 2 de dezembro de 2010, que caberia ao Qatar organizar a 22ª edição do Campeonato do Mundo. As primeiras reações até foram positivas. Seria a primeira vez que a maior competição da FIFA seria disputada no Médio Oriente, seria a primeira vez que a organização seria atribuída a uma nação árabe.




Mas logo a seguir vieram os primeiros problemas. Primeiro as suspeitas e acusações de corrupção, suborno e pressões que envolveram altas figuras da FIFA com influência na atribuição do Mundial. Depois com a denúncia que o pequeno emirado recorria a «trabalho escravo» na construção dos luxuosos estádios e quanto à falta de segurança no trabalho que terá levado à morte de dezenas de trabalhadores estrangeiros. Em redor destes escândalos, a incontornável questão das elevadas temperaturas que se fazem sentir no verão naquele país. O Qatar tentou suavizar esta última questão, anunciando ao Mundo que estava determinado a fazer um forte investimento em estádios climatizados e num sistema inovador de ar condicionado. O problema é que a atual tecnologia não chega para arrefecer um país inteiro. Em causa não estavam apenas os jogos, mas tudo o que rodeia o espetáculo, desde o bem-estar dos adeptos, até às condições de treino dos jogadores.

A mudança das tradicionais datas do campeonato do Mundo começou a ganhar força. Entre 1930 e 2010, todas as dezanove edições do Mundial foram disputadas entre finais de maio e finais de julho, sem exceção. A segunda edição, em 1934, em Itália, foi a que começou mais cedo, a 27 de maio, enquanto a primeira edição, no Uruguai, e a de 1966, em Inglaterra, foram as que conheceram o vencedor mais tarde, ambas a 30 de julho.





Jogadores a favor da mudança


Há um ponto em que parece existir um consenso generalizado. É impossível jogar no Qatar no verão. A começar pelo manual de saúde da FIFA que alerta para o risco de os jogadores praticarem desporto com temperaturas acima de 32 graus centígrados. O presidente do Sindicato Internacional dos Jogadores de Futebol (FIFPro), Philippe Piat, manifestou-se, desde logo, «encantado» com o possível adiamento para o inverno. «Para os jogadores de futebol é uma notícia excelente. Fizemos pressão para que a data seja adiada para o inverno», explicou o dirigente à rádio francesa RTL Joaquim Evangelista, o representante dos jogadores da liga portuguesa, também recebeu a notícia com «aplausos». «Toda a gente estranhou a atribuição do Mundial ao Qatar, foi uma decisão política. Desportivamente toda a gente ficou com muitas reservas. Havia da nossa parte uma grande preocupação com as elevadas temperaturas e temo-la manifestado junto da FIFA. O mais importante é a saúde dos atletas. É muito mais sensato mudar as datas, mesmo sabendo que isso vai obrigar a um reajustamento do quadro competitivo», contou ao Maisfutebol.

Joaquim Evangelista lembra também que é uma polémica que surge pela primeira vez na Europa, mas que já tinha acontecido noutros continentes. A FIFPro defende mesmo que as alterações no calendário de 2022 até se podem perpetuar para os Mundiais seguintes, mas Joaquim Evangelista não vai tão longe. «Aí não sou tão dogmático. Compete a cada federação ajustar os respetivos calendários, salvaguardando, em primeiro lugar, a saúde dos jogadores», acrescentou, lembrando que continuam a morrer muitos jogadores nos campos de futebol e que «mesmo o Mundial do Brasil é um risco» devido às elevadas temperaturas no outro lado do Atlântico.

A mudança do calendário do Mundial-2022 ameaça, no entanto, abanar com toda a estrutura do futebol europeu, não só no ano em que se disputar a fase final, que vai obrigar a um novo enquadramento dos calendários domésticos e das competições da UEFA, mas também no ano anterior, com os jogos de qualificação, como também nos consequentes, com o possível atraso no reinício das competições da época seguinte. Caso avance a possibilidade sugerida pelo secretário-geral da FIFA, com o Mundial a arrancar entre novembro e dezembro, as ligas europeias teriam de ser interrompidas, no máximo, em outubro, para depois serem reatadas em janeiro/fevereiro. Outra possibilidade passa por atrasar o início das competições domésticas para o início do ano, depois de jogada a fase final, mas neste caso os adeptos ficariam privados de assistir aos jogos dos respetivos clubes em dois terços do ano. Inimaginável. Duas possibilidades que vão certamente encontrar focos de resistência, especialmente em Inglaterra que vive o mês de dezembro com especial intensidade, com um número crescente de jogos, incluindo o tradicional «boxing day», logo a seguir ao Natal.




A alteração do calendário teria um impacto menor noutras ligas que, pelo rigor dos respetivos invernos, até costumam interromper as competições domésticas por esta altura, como acontece agora com a Bundesliga. As competições da UEFA também teriam de encaixar num novo calendário. No atual figurino da Liga dos Campeões e da Liga Europa, as últimas três jornadas da fase de grupos disputam-se entre novembro e dezembro e os primeiros jogos da fase a eliminar estão marcados para meados de fevereiro. Além disso, o Campeonato do Mundo perderia a festa coletiva que só o verão permite nas principais praças das grandes cidades da Europa onde, por hábito, se aglomeram multidões para assistir aos jogos através de ecrãs gigantes. Um Mundial de inverno seria, acima de tudo, um mundial de televisão.

A FIFA tinha previsto tomar uma decisão na última reunião do seu comité executivo, no início de outubro de 2013, mas as reações negativas, não só das ligas europeias, mas também de patrocinadores e dos grupos que detêm os direitos de transmissão dos jogos, levaram o órgão máximo do futebol mundial a adiar qualquer decisão para depois do Mundial do Brasil. Um adiamento que veio arrefecer a questão, até porque na altura ainda se decidia boa parte da qualificação para o Mundial no Brasil. Mas a verdade é que nos últimos anos a ideia de mudar o campeonato do Mundo para o inverno tem vindo a ganhar força como uma inevitabilidade, até porque existe consenso quanto ao facto de ser «impossível jogar no verão no Qatar».





A UEFA, pela voz do seu presidente, Michel Platini, bem como a maioria das federações europeias, tem-se manifestado favorável à mudança do calendário como a melhor solução para fugir ao intenso calor, mas as grandes ligas europeias, com a Liga Premier inglesa e a Bundesliga alemã à cabeça, foram as primeiras a torcer o nariz a esta possibilidade. «Foi a FIFA que decidiu que o Mundial de 2022 seria jogado no verão no Qatar. Se agora chegaram à conclusão que não pode ser jogado no Qatar, então têm de mudar a localização. Não podem simplesmente mudar a competição para o inverno, é uma questão completamente diferente. O calendário desportivo em todo o mundo vai ser afetado», lembrou Richard Scudamore, chefe-executivo da Liga Premier.

Christian Seifert, chefe-executivo da Bundesliga, vai mais longe e diz que um Mundial no inverno vai «comprometer» o futebol europeu por três temporadas e acusou a FIFA de ignorar as ligas que «são o coração do futebol». Mas Seirfert é, cada vez mais, uma voz isolada na Alemanha. A federação germânica (DBU) deu as «boas-vindas» a um Mundial no inverno, enquanto Karl-Heinz Rummenigge, diretor do Bayern Munique, também se mostrou favorável a uma alteração do calendário tradicional, propondo «um sistema de lego», ou seja, a divisão da Bundesliga em blocos, de forma a poder encaixar o Mundial a meio da competição doméstica. Por curiosidade, o Bayern Munique, com a Bundesliga interrompida pelo rigoroso inverno alemão, está, nesta altura, a treinar no Qatar.




Ligas europeias apreensivas com possível alteração do calendário

A Associação das Ligas Profissionais de Futebol da Europa (EPFL), presidida pelo português Emanuel Medeiros, lembrou recentemente que a decisão de se jogar no inverno vai afetar os calendários das temporadas de 2020/21, 2021/22 e 2022/23 e pode vir a comprometer contratos de jogadores e acordos já estabelecidos de transmissões televisivas. «É um assunto muito sério sobre o qual não vamos fazer comentários especulativos. Ouvi as declarações de Jêrome Valcke, que foram exprimidas a título pessoal, até porque a FIFA, logo a seguir, garantiu que não está definida nenhuma mudança no calendário. Ainda hoje tive uma reunião com a FIFA em que me foi garantido isso mesmo, não vai haver nenhuma decisão sem uma consulta prévia às ligas europeias», destacou o dirigente português ao Maisfutebol.

Emanuel Medeiros, que vai abandonar a direção da EPFL em março próximo, diz que, nesta altura, nem equaciona a possibilidade de uma alteração dos calendários das ligas europeias. «Não consigo imaginar, nem posso contribuir para qualquer conjetura. O calendário do Campeonato do Mundo de 2022 está definido para os meses de junho e julho. Não há ninguém, a nível institucional, que tenha adiantado outra data. A FIFPro (jogadores) tem a sua posição, mas a FIFPro não tem qualquer poder na formalização dos calendários das ligas europeias», destacou. O representante das ligas europeias deu ainda a entender que foi a sua associação que levou a FIFA a adiar uma decisão para depois do Mundial do Brasil. «Foi a nossa posição oficial que levou a FIFA a não tomar uma decisão precipitada. O processo vai seguir os seus trâmites. Depois do Mundial do Brasil vai ser criado um grupo de trabalho para estudar o calendário em todas as suas vertentes, quer sejam desportivas, comerciais ou políticas», acrescentou.

Mas o caos vai certamente estender-se a alguns habituais parceiros da FIFA, com custos inevitáveis para o órgão que gere o futebol mundial. A título de exemplo, o grupo norte-americano liderado pela Fox, que pagou um recorde de quase 500 milhões de euros pelos direitos de transmissão das fases finais de 2018 e 2022 (quatro vezes mais do que a ESPN tinha pago pelo Mundial-2010), já veio a público dizer que está contra um Mundial no inverno, até porque nessa altura estará a transmitir os jogos da NFL (liga de futebol norte-americano). «A Fox Sports comprou os direitos do Campeonato do Mundo sob o pressuposto que seria disputado no verão como tem sido desde 1930», referiu a empresa em comunicado. Mas a chamada de atenção da Fox é apenas a ponta de um icebergue de muitos outros acordos empresariais e negócios de milhões e milhões em redor da FIFA.

Alternativas ao inverno pouco convincentes

A possibilidade de se mudar o Campeonato do Mundo para o inverno tem vindo a ganhar força, mas já houve outras alternativas em cima da mesa. A Federação da Escócia, por exemplo, sugeriu que o torneio se disputasse logo a abrir o ano de 2022, entre finais de janeiro e início de fevereiro. Uma solução que caiu de imediato por terra com a forte reação do Comité Olímpico Internacional a recusar uma sobreposição de calendários com os Jogos Olímpicos de Inverno que só vão conhecer a cidade anfitriã em 2015. A proposta escocesa também mereceu uma reação negativa da Inglaterra que faz finca-pé à tradição de jogar a seguir ao Natal e logo a abrir o novo ano. Jérôme Valcke, sempre disposto a falar, veio, na ocasião, a público serenar as pretensões inglesas. «Não estamos a falar de jogar no Natal ou no ano novo. O Natal está a salvo. O Campeonato do Mundo nunca se realizará entre 24 de dezembro e 1 de janeiro. O Boxing Day está garantido», destacou o dirigente francês.

As novas declarações de Valcke voltam a colocar em causa o tradicional Boxing Day. «Se jogarmos entre novembro e dezembro, uma altura em que as condições climatéricas são melhores, teremos temperaturas semelhantes a uma primavera quente na Europa, com cerca de 25 graus celsius, e isso será perfeito para jogar futebol», destacou esta quarta-feira.

Existiu ainda outra alternativa que nunca foi recebida com grande entusiasmo: manter o calendário no verão, mas marcar os jogos para a noite. Por volta da meia-noite, as elevadas temperaturas no Qatar caiem para perto de metade, o que já seria aceitável para a prática do futebol. A essa hora, o mercúrio dos termómetros cai dos 50 para os 25/30 graus, temperaturas mais baixas do que aquelas que os jogadores enfrentaram no Mundial do México, em 1970, ou no Mundial dos Estados Unidos, em 1994. Além disso, com os jogos a começarem à meia-noite no Qatar, com a diferença nos fusos horários, permitiria audiências televisivas bem mais elevadas, não só na Europa, como também na América. Em terceiro lugar, esta solução permitiria não mexer nos tradicionais calendários das ligas europeias. O maior contra-tempo desta solução é que sujeitaria os jogadores a também treinar à noite e a uma brusca e pouco sensata alteração nos respetivos biorritmos.

Para já, como reforçou a FIFA, nada está ainda decidido, mas depois do Mundial do Brasil, a questão do Qatar promete voltar a dar que falar.



Veja as datas de todas as edições dos Campeonatos do Mundo

Mundial-1930 (Uruguai): de 13 a 30 de julho (17 dias)
Final: Uruguai-Argentina, 4-2

Mundial-1934 (Itália): de 27 de maio a 10 de junho (14 dias)
Final: Itália-Checoslováquia, 2-1 (ap)

Mundial-1938 (França): 4 a 19 de junho (15 dias)
Final: Itália-Hungria, 4-2

Mundial-50 (Brasil): 24 de junho a 16 de julho (22 dias)
Final: Brasil-Uruguai, 1-2

Mundial-54 (Suíça): 16 de junho a 4 de julho (18 dias)
Final: Alemanha (RFA)-Hungria, 3-2

Mundial-58 (Suécia): 8 a 29 junho (21 dias)
Final: Brasil-Suécia, 5-2

Mundial-1962 (Chile): 30 de maio a 17 de junho (18 dias)
Final: Brasil-Checoslováquia, 3-1

Mundial-1966 (Inglaterra): de 11 a 30 de julho (19 dias)
Final: Inglaterra-Alemanha (RFA), 4-2 (ap)

Mundial-1970 (México): 31 de maio a 21 de junho (22 dias)
Final: Brasil-Itália, 4-1

Mundial-1974 (Alemanha, RFA): de 13 de junho a 7 de julho (24 dias)
Final: Alemanha (RFA)-Holanda, 2-1

Mundial-1978 (Argentina): 1 a 25 de junho (25 dias)
Final: Argentina-Holanda, 3-1 (ap)

Mundial-1982 (Espanha): 13 de junho a 11 de julho (28 dias)
Final: Itália-Alemanha (RFA), 3-1

Mundial-1986 (México): de 31 de maio a 29 de junho (29 dias)
Final: Argentina-Alemanha (RFA), 3-2

Mundial-1990 (Itália): 8 de junho a 8 de julho (30 dias)
Final: Alemanha (RFA)-Argentina, 1-0

Mundial-1994 (Estados Unidos): 17 de junho a 17 de julho (30 dias)
Final: Brasil-Itália, 0-0 (3-2, g.p.)

Mundial-1998 (França): 10 de junho a 12 de julho (32 dias)
Final: França-Brasil, 3-0

Mundial-2002 (Coreia do Sul e Japão): 31 de maio a 30 de junho (31 dias)
Final: Brasil-Alemanha. 2-0

Mundial-2006 (Alemanha): de 9 de junho a 9 de julho (30 dias)
Final: Itália-França, 1-1 (5-3, gp)

Mundial-2010 (África do Sul): 11 de junho a 11 de julho
Final: Espanha-Holanda, 1-0 (ap)

Mundial-2014 (Brasil): de 12 de junho a 13 de julho (31 dias)

Mundial-2018 (Rússia): período ainda a definir

Mundial-2022 (Qatar): período ainda a definir