«A morte é um nojo. Morrer é uma autêntica vergonha»
Miguel Esteves Cardoso

O rapaz que «merecia viver até aos mil anos» desapareceu sem avisar ninguém. E deixou um rasto de revolta, angústia e impotência em todos os que o conheceram.

Lucas, João Lucas, tocou os corações de muitos. Em casa, no futebol, na vida. O Maisfutebol presta-lhe uma homenagem simples, no dia em que partiu. Ficam as memórias, tantas e tão boas, e o sorriso contagiante, lembrado por aqueles que falaram connosco.

José Viterbo conheceu-o em 1995, nos juniores da Académica. É ele que nos diz, em lágrimas, que a forma de estar de Lucas justificava a vida eterna.

Wender, desesperado, lembra-nos que esteve no último jogo da carreira profissional do malogrado médio. A 19 de dezembro de 2007, o Sp. Braga venceu o Estrela Vermelha por 2-0 e o brasileiro fez um dos golos. «Dizia-me a brincar que lhe estraguei a despedida».

Na temporada 2013/14, Wender e Lucas foram colegas de equipa no Pasteleira. O diretor desportivo do histórico clube da cidade do Porto é Rémulo Marques, um dos melhores amigos de João Lucas e autor de uma biografia que estava a ser preparada há dois anos. Em segredo.

«Falou comigo e avançámos. Ele queria narrar tudo o que lhe aconteceu em 2008. Chegou ao apogeu e teve de parar devido aos problemas cardíacos. Tenho as gravações das nossas conversas, só nós e a família é que sabíamos», conta Rémulo Marques.
 

Rémulo Marques estava a preparar com Lucas uma biografia do ex-futebolista

«O Lucas queria ajudar todos os que passam por algo parecido. Dizia-me muitas vezes: ‘tenho um coração tão grande e ele traiu-me’. Se a família desejar e permitir, o livro verá a luz do dia. Já tínhamos título escolhido: ‘E depois do adeus?’».

Amigo muito chegado, Rémulo sublinha a «a boa disposição constante» de Lucas, abalada apenas por episódios muito concretos.

«Sempre que via um futebolista a falecer por problemas cardíacos ele ficava arrasado. Viu o Feher, o Puerta, o Foé a morrer e ele conseguiu identificar o problema dele a tempo. E agora aconteceu-lhe isto…»

«Sentiu-se mal duas vezes e parou completamente de jogar»


Nos últimos tempos, nada no comportamento de Lucas indiciava o agravar da doença. Fazia uma vida normal, apenas limitada nos esforços físicos. De qualquer forma, Rémulo recorda que a paixão falou maior do que o juízo na altura em que aceitou ajudar o Pasteleira.

«Jogou em algumas partidas, mas sentiu-se mal duas vezes e parou. Ele jogava com um aparelho que monitorizava o batimento cardíaco e geria o esforço. Sei que também chegou a jogar nos veteranos do Boavista. Custava-lhe muito estar de fora».

Wender ficou chocado ao tomar conhecimento do falecimento de Lucas.

«Fomos adversários, vivemos grandes duelos, ele a lateral e eu a extremo. Curiosamente acabámos por ser colegas no Pasteleira. Era um rapaz alegre, estivemos juntos há uma semana no Estádio Axa. Ele estava ótimo, agendámos um jantar e tudo».

Soluçante, Wender despede-se da forma possível. «Viveu 35 anos de forma intensa. Tinha um mundo colorido, cheio de alegria. Vai deixar muita saudade».

Nos últimos tempos, Lucas dedicava o tempo ao Sindicato de Jogadores, à família, à cadela Lua - «a melhor amiga dele, inseparáveis» - e à música. Outra surpresa para quem não o conhecia tão bem.
 

Lucas e Lua, a inseparável cadela

«Estava a lançar uma carreira muito séria como DJ. Adorava House, Techno e Dance. Aprendeu sozinho, por carolice e apaixonou-se pela atividade. No próximo sábado ia atuar na discoteca Eskada, em Vizela. O Lucas gostava de se divertir´, de sair à noite e juntou o útil ao agradável»
, acrescenta Rémulo Marques.


DJ Set de Lucas: a música era a outra paixão


Lucas tinha planos, muitos planos. O livro, a música, a beneficência. Tinha urgência em ser feliz e, aparentemente, saúde suficiente para isso.

«Falámos ontem e confirmou-me a presença em dois jogos de solidariedade, a 6 e 20 de junho. Estava impecável, muito positivo. Ninguém pensava num final destes, tão brutal»
.
 

Lucas no Pasteleira: este foi um dos últimos jogos em vida

Entre 1989 e 1995, João Lucas vestiu a camisola do Ginásio de Alcobaça. A «extraordinária capacidade física» captou a atenção da Académica e na transição de juvenil para júnior mudou-se para Coimbra.

José Viterbo, atual técnico principal da Briosa, recorda «o miúdo hiperativo», «incapaz de estar sossegado no treino», «sempre sério e competitivo».

«Fez um trajeto ótimo na Académica, tornou-se capitão com naturalidade. Ainda foi emprestado ao Anadia e ao Sp. Pombal, mas toda a gente no clube o adorava. Voltou e tornou-se indiscutível. Ainda me lembro de brincar com ele e dizer-lhe: ‘és a menina dos olhos do João Alves’ (risos)».
 

Lucas (2º em baixo, a contar da direita) na Académica

João Alves adorava o futebol de Lucas e transformou-o em avançado. «É verdade, certa vez fomos jogar à Choupana e o João disse-me: ‘vou jogar sem ponta de lança e deixar o Lucas na frente, com liberdade. Vai ser ele a decidir’. E foi mesmo, o João acertou».

Viterbo já tem «muitas saudades» de Lucas. E desabafa durante longos minutos.

« Isto é uma estupidez. Há três semanas estivemos juntos num jogo de juniores. Brincámos com o peso excessivo de ambos, abraçámo-nos e prometemos estar mais vezes juntos. Era um homem de sorriso fácil, simples, tudo o que conseguiu no futebol foi à custa dele. Era um trabalhador nato, por prazer»
.

José Viterbo é amigo da família de Lucas, conhece bem os pais e as irmãs. Ainda não teve capacidade para falar com nenhum deles.

«Perdi a vontade de treinar e trabalhar nos próximos dias. Isto mexeu comigo. O Luquinhas merecia viver até aos mil anos. Isto é uma estupidez».

O funeral de João Lucas realiza-se quarta-feira, às 18 horas, no Mosteiro de Alcobaça. Obrigado pelo sorriso, Lucas.
 

Lucas (em baixo, no meio) num jogo do Boavista

A CARREIRA DE JOÃO LUCAS:

Nascido a 25 de outubro de 1979, nas Caldas da Rainha.

1989-1995: Ginásio de Alcobaça
1995-2004: Académica de Coimbra
(emprestado 1998/1999 ao Sporting Pombal)
(emprestado 1999/2000 ao Anadia)
2004-2007: Boavista
2007/2008: Estrela Vermelha (Sérvia)
2013/2014: Pasteleira