Punhos e dentes cerrados. Levanta-se decidido, depois de ter dedicado aos deuses a batalha que se aproxima. Grita para si em surdina: aguentar ou morte! Cabelos desgrenhados, bigode farto, torna-se feroz para crescer em centímetros e defender o último pedaço de território. A baliza fica mais pequena, em investidas tão perto de território inimigo, de braços esticados e pensamento suicida. Com cada defesa chegava a sensação de algo impossível que se tinha passado, contranatura, que o elevava ao pedestal dos heróis. Bento não tinha semelhante, era maior do que ele mesmo, quase sempre maior do que todos.

O 0-0 milagroso em Glasgow frente à Escócia numa das maiores exibições de um guarda-redes português, as espantosas defesas perante a França, apesar dos três golos sofridos, e tantos outros jogos seguros naquele jeito louco de sair dos postes entre o galope das pernas adversárias e no voar como se não houvesse chão lá em baixo. Esse orgulho contido, apertado num colete-de-forças de apenas 1,73 metros, e o desdenhar da gravidade de um gato de rua, com bem mais do que sete vidas, tornou-o um dos melhores da sua geração. A Bento faltava-lhe muita coisa, sobretudo o tamanho e a elegância felina dos rivais de raça apurada, mas tinha em excesso o rigor no trabalho, a vontade e o acreditar em si próprio.

Hoje que se discute Quim ou Ricardo, olha-se para trás e vemos Bento, imperturbável perante um Vítor Damas nado e criado na baliza. Sempre ao mesmo ritmo, sempre com a mesma qualidade, que lhe garantiram o número 1 na Selecção durante dez anos, até o perónio o trair em Saltillo, nesse Mundial do nosso descontentamento. Há quem coloque o recordista Vítor Baía uns degraus acima de todos, pelo currículo, elegância e talento. Por 12 anos de quinas ao peito, por grandes momentos no F.C. Porto. Mas poucas vezes lhe vimos o impossível, essa capacidade de ir sempre mais além. A Bento não.

Bento parecia um gladiador a sair da pequena área, feroz e pronto para tudo. Combatia por cada bola com um mártir e conseguia a bênção dos deuses. Fosse Six, Platini ou Giresse a aparecer-lhe à frente o mais certo era a bola sair pela linha de fundo, sem destino e perdida, ou acabar junto ao seu corpo perto de uma cicatriz ainda fresca.

Os guarda-redes mudaram. Refinaram-se, deixaram de ter tão mau feitio, perderam grande parte da dose de loucura. Deixaram de berrar atrocidades, culpar o mundo inteiro por um «frango», uma saída em falso. Tirando um ou outro exemplo, falta-lhes personalidade. Com personalidade tem-se confiança. É-se melhor.

Quim e Ricardo não são Baía nem Bento. Falta-lhes a naturalidade de um e capacidade de martírio do outro. São nomes que entram para a história por fazerem parte de um capítulo. Vão ser discutidos vezes sem conta no futuro, parece que um não vive nem irá viver sem o outro. Manuel Galrinho Bento tinha uma capacidade sobrehumana para ultrapassar todos os obstáculos. Cada vez que se lembravam de um fantástico Damas em grande forma, o homem da Golegã que o Benfica encontrou no Barreiro respondia em campo. E acabava com a questão.