Sento-me com uma folha branca à minha frente. O relvado tornou-se pelado, os ferros das balizas ainda mais ocos debaixo da ferrugem podre do tempo, voam metades de arbustos em cenário de Faroeste, sem pistoleiros ou sioux por perto. Apenas o vazio, enquanto não surge algo do canto esquerdo do ecrã, a faca de Psycho ou uma bola no pé esquerdo de Messi, e faça escorrer pelas paredes os agudos que dão a intensidade ao terror ou nos encaminham para o remate, para uma das conclusões de Aristóteles...

Se um homem bom passa da má à boa fortuna, não sentiremos terror;

Se um homem bom passa da boa para a má fortuna, ficamos com pena, e não sentimos compaixão ou terror;

Se um homem mau passar da boa para a má fortuna, ficamos felizes;

E se um homem mau passar da má para a boa fortuna, sentimos repugnância.


O país compara o peso do seu fardo, grama a grama, e forma tabelas de desgosto. Conta cêntimos, pede e rasga consultas de saldo de Multibanco, faz luas e meias-luas à volta de ofertas de emprego, recusa sobremesa ao almoço, atrasa pagamentos até ao limite, raciona a gasolina em prestações de dez euros. Suazo corre para a baliza em galope de centauro e arma a besta para um grande golo, Lucho sublinha com stickada de classe que vale o seu peso em ouro, Liedson chega de cabeça tão leve como a alcunha para o mais provável dos festejos.

O fabuloso pontapé de moinho de Deco frente ao Bolton dera o mote. Cristiano embala, com a Bola de Ouro a tiracolo, mas desta vez fica em branco. Já Lisandro esquece-se de todos os tiros ao lado com um golaço e deixa a vendetta a meio-caminho depois do 4-0 de Londres. A visão de camaleão de Milevskiy inventa o golo de Eremenko, Ribéry destroça compatriotas com dois passes de mágica de Fantasma da Ópera, Ngog faz disparar os próprios batimentos cardíacos, com a mão debaixo da camisola e o punho-coração a pular-lhe do peito. Riera martela a baliza do PSV com um míssil terra-ar e Ibrahimovic faz mais um que deve ser visto e revisto mais tarde no Youtube.

Nós, que também somos eles, sentimo-nos mais próximos de Ribéry e Tévez, que trazem na face as cicatrizes do sofrimento, e do miúdo Messi, que sobreviveu à doença que o impedia de crescer. Odiamos o gel capilar e a arrogância de Cristiano Ronaldo, quando se acha o melhor de todos, ou o discurso de Mourinho, de peito feito para o Mundo.

Criticámos o mau feitio de Zidane e esperávamos que perdesse tantas vezes quantas nos fez sofrer, depois daquele penalty de Abel Xavier, e aprendemos a sorrir com os truques de Ronaldinho e Roberto Carlos. Aplaudimos quando o «canibal» Materazzi (sim, a alcunha é de Boulahrouz, mas serve) é expulso e, se pudéssemos voltar atrás no tempo, entraríamos em campo para dar dois estalos em Gentile por cada porrada que desse em Maradona. Se ainda formos a tempo, faremos força para que entrem todos os livres de Zico. Porque merece! Queremos sempre que o jogo seja justo, mas, infelizmente, os deuses não distribuíram talento e sorte em partes iguais.

Distinguimo-los com o coração. Revemo-nos neles em cada jogada, colocamo-nos sempre no seu lugar. Até eu, com esta barriguinha... E é isso que faz o futebol, o que nos faz vibrar. Não é só Cristiano Ronaldo que falha um golo, somos todos nós. Eu, tu, também Messi um pouco, Fernando Torres, Kaká... Sou mais eu que gosto dele do que tu que julgas que não gostas, mas também tu. A bola nos seus pés é um luxo, a crise não existe, o país não acabará o ano em recessão, não há ameaças de uma passagem de ano com solas de bota cozidas em vez de peru. Nem para ti, Chaplin. Enquanto somos eles não somos nós.

É mais uma dose de ópio para esta mesa, por favor.

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreve aqui todas as semanas.