Somos tipos que olham para a vida com demasiada gravidade e não devíamos. Respire fundo, leitor. Contra mim falo. Gostava de ser um relativista e não consigo.
Por vezes, sobretudo quando me chateio, perco totalmente a capacidade de limitar as coisas a uma importância menor que elas deviam passar a ter naquele preciso momento.
Acho que o devo admitir: sou uma fraude, incapaz de manter a calma. Nesta altura confesso a inveja que tenho de Laurentino Dias.
Sim, pelo ordenado também. Mas não falo disso. Falo da capacidade de relativizar os problemas. O Secretário de Estado do Desporto admitiu que adormeceu ao terceiro golo do Brasil, na vitória sobre Portugal.
Nesta altura faço-lhe uma vénia. No fundo ele viu o jogo enquanto teve graça. Quando a coisa começou a tornar-se grave, adormeceu.
Esta capacidade de relativizar a vergonha nacional chega a comover-me. Mais do que isso, choro copiosamente. De inveja.
Já estou a imaginar. Cinco minutos de jogo e a fé toda no hino nacional. Aos dez vem o primeiro bocejo. Aos vinte a vista já pesa. À meia-hora os olhos começam a fechar-se. À hora de jogo ressona-se como se não houvesse amanhã.
As vantagens são óbvias. Fugia da parte má do jogo e evitava pesadelos. Devolvia horas ao sono, retemperava forças e acordava bem-disposto.
Podia mergulhar num pequeno-almoço suculento, cereais de chocolate, uma papaia de sobremesa, e enfrentava-se o dia com um sorriso nos lábios.
Seguia para o trabalho a assobiar um música catita dos anos 70 e quando alguém lançava o descalabro nacional para a mesa de discussão, retirava o sorriso.
Nessa altura afirmava-me triste. Atenção: triste. «Pelo resultado e pela exibição». O que é normal porque só vira a parte menos má.
Nessa altura alguém lançaria um olhar de inveja pelo bom ar matinal. Mas não se deixe enganar, leitor: o segredo esteve no dia anterior, no preciso momento em que se relativizou o problema. Foi essa capacidade que fez a diferença.
Por isso é que uns chegam a responsáveis políticos e outros não.
«Box-to-box» é um espaço de opinião da autoria de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui todas as segundas e quintas-feiras
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