A Técnica da Força é um espaço de opinião quinzenal de Francisco David Ferreira, jornalista da TVI. Sempre às terças-feiras. Pode seguir o autor no Twitter.

É uma das imagens da jornada (talvez da época?): Carlos Xistra em lágrimas no relvado, no final do FC Porto - Moreirense, o último jogo da carreira profissional de árbitro. Destaque-se também o pormenor de uma mensagem personalizada que trazia na camisola, com um agradecimento provavelmente justo. «Obrigado família e amigos». A julgar pelas sinuosas caixas de comentários de jornais e pelo pelourinho virtual das redes sociais, Xistra pode muito bem ter razões para agradecer o apoio e paciência dos mais próximos. Não deve ter sido fácil. 

Não está em causa Carlos Xistra de forma individual, mas toda a arbitragem em Portugal. No momento de uma despedida emotiva, qual é a reacção dos adeptos dos principais clubes? A do costume, claro. Irracionalidade e um certo ódio preocupante, como se no mundo do futebol tudo fosse permitido: de alucinações colectivas a insultos gratuitos e inflamados.

Logo vieram os adeptos do Benfica enumerar aquelas vezes em que Xistra «roubou» os encarnados, o que faz do árbitro um cúmplice do FC Porto ou Sporting. Mas, mais abaixo, surgiam adeptos portistas a recordar aquele erro que prejudicou o clube, e que portanto é tão evidente que o árbitro está envolvido num esquema ligado aos rivais de Lisboa. Por fim, espaço para os adeptos do Sporting abordarem alguns lances errados, chegando naturalmente à óbvia conclusão que Xistra é um avençado de FCP ou SLB. 

Um amigo meu, que curiosamente até é treinador de futebol, fez uma curiosa pergunta: mas afinal o Xistra «gamava» quem? A pergunta era irónica, mas acerta em cheio. Então Xistra «gamava» todos? Decidam-se de uma vez… No fundo, Xistra «gamava» todos porque todos são «gamados» ano após ano… por todos os árbitros. E é isso, talvez apenas isso, que impede os três clubes mais fortes da Liga de conquistar o campeonato 20 anos seguidos. 

Falo dos três grandes, mas há outros emblemas, normalmente através dos presidentes, que ajudam à festa. Depois de um jogo em que foram mais uma vez «roubados», a altura do murro na mesa. Aparecem na sala de imprensa ou na zona mista, disponíveis para falar sobre a vergonha do que se passou. Não vão tolerar que tratem assim a instituição, os jogadores estão destroçados no balneário, trabalha-se uma semana toda para depois gozarem assim com a cara deles. Depois é juntar uns posts no Facebook, umas ameaças de exposição à Liga, e daqui a uns tempos, quando for preciso, repete-se desde o início. Repetitivo mas encantador. Há problemas com a arbitragem? Claro. Há árbitros, podemos dizer assim, fracos? Provavelmente. Mas o resto do futebol é perfeito? De todo. 

E não deixa de ser curioso: quando um erro de arbitragem vale pontos, o que se ouve são sons de grilos. Ou afinal, dessa vez, ninguém comenta arbitragens. Até porque ainda não se viu o lance com atenção, não houve oportunidade de ver na televisão. Ou simplesmente passa-se à frente. 

É por isto que o ambiente é tóxico. É por isso que as lágrimas de Xistra serão um misto de tristeza pelo final da carreira, emoção do momento, mas que encerram em si um certo alívio. 

Todo este cenário recorda-me um dos primeiros trabalhos humorísticos dos Gato Fedorento, na época ainda num programa de menor visibilidade na SIC Radical, longe do estrelato actual. Uma senhora indignada vociferava uma frase que eu vou dedicar a todos aqueles que magicam teorias da conspiração todos os anos. «E queria também aqui anunciar, se faz favor, que isto aqui é uma data de gatunos, uma data de ladrões e uma data de chupistas». É mais ou menos isto?