1- Já o disse há umas semanas, no programa Maisfutebol da TVI 24. Repito-o enquanto é tempo: indo ao arrepio da indiferença quase generalizada da «família do futebol», tenho muita pena de que no dia 4 de outubro se quebre a tradição de não haver jogos de Liga em dia de eleições legislativas.

Não é por acreditar que os 80 mil espectadores esperados nos estádios, para essa tarde, tenham grande impacto na taxa de abstenção – à exceção de quem quiser acompanhar o Benfica à Madeira, será quase sempre possível votar antes do jogo e o mesmo se aplica às centenas de milhares que vão querer seguir os jogos pela TV.

Também não é por recear a agitação social provocada pela «proximidade dos jogos às assembleias de voto», como lembram os responsáveis da Comissão Nacional de Eleições – 41 anos de democracia atenuaram fortemente esse risco, apesar de, cada vez com mais frequência, sermos convidados a viver a política com os horizontes estreitos de claques antes de um dérbi.

A minha questão é outra: num tempo em que a memória se perde com facilidade crescente, acho muito importante a rotina do dia eleitoral sem grandes espectáculos de massas em paralelo – mais do que isso, acho-a tocante. Quanto mais não seja para reforçar a ideia de que a primeira coisa a estar em causa numa eleição é o privilégio de poder participar nela – um privilégio que nos foi entregue por quem lutou muito por ele. Fazer da eleição a coisa mais importante desse dia, e participar nele convictamente, é o mínimo dos tributos que se pode prestar a essa história, resistindo à tentação fácil de degradá-la.

Por isso, mesmo se - como eu - acha que os intervenientes diretos não estão muitas vezes à altura de receber esse privilégio das suas mãos, no dia 4, vote. Vá à bola, ou não. Veja os jogos na TV, ou não. Mas vote. Vote em branco, vote em tinto, à esquerda, à direita, mas vote. Nem que seja, em desespero de causa, para desenhar graçolas no boletim: anular o seu privilégio também é um privilégio conquistado. Não adianta grande coisa, é certo. Mas, ainda assim, será sempre melhor do que não ir a jogo e ficar no sofá a queixar-se do árbitro durante os próximos quatro anos.



2- Ainda aureolado com a brilhante carreira de jogador, mais o excelente trabalho na organização do primeiro Mundial com 32 equipas, Michel Platini foi o braço direito de Sepp Blatter no processo eleitoral que, em 1998, o levou à sucessão de João Havelange. Em troca, tornou-se uma estrela em ascensão no futebol engravatado. Primeiro como conselheiro principal de Blatter. Depois, em 2007, como candidato vitorioso à presidência da UEFA, contra o sueco Lennart Johansson. Numa eleição renhida, que o francês ganhou por 27-23, o apoio explícito de Blatter provocou queixas de Johansson, seu inimigo de outras campanhas.

Até aí, a relação entre Blatter e Platini era quase paternal, um pouco na linha do que acontecera com Havelange e o suíço, entre 1975 e 1998. Mas o tempo, como sempre nestas coisas, é o maior dos testes à solidez dos laços. Como Havelange, antes dele, Blatter foi cultivando uma obstinada relutância em sair de cena, inquinando a ligação com o protegido. E quando, em 2011, Blatter decidiu avançar para um quarto mandato na FIFA, contrariando promessas anteriores e as expectativas de Platini, a relação azedou de vez - ainda que, em maio desse ano, o francês engolisse um sapo, anunciando o apoio da UEFA à reeleição do mentor.

Sabe-se o que aconteceu depois: o quarto mandato de Blatter afundou-se num pântano crescente de escândalos, acusações, suspeitas - e também, por entre muito ruído de fundo, provas objetivas de corrupção que comprometiam boa parte da organização. Em 2014 já Platini podia abrir o jogo, distanciando-se do presidente e preparando o terreno para a sua candidatura, na eleição de 2015.

Já com uma banda sonora de investigações das autoridades norte-americanas e suíças a vários processos de corrupção e lavagem de dinheiro - alguns relacionados com a atribuição dos Mundiais de 2018 à Rússia e ao Qatar - Blatter insistiu, e apresentou-se a um quinto mandato, numa altura em que já era difícil, para qualquer observador externo, não sentir um pouco de vergonha alheia. A farsa da reeleição de 29 de maio, e da renúncia, uma semana depois, parecia virar a página de vez, abrindo caminho para a era Platini.

Em vez disso, iniciou-se um apaixonante jogo de pingue-pongue entre Zurique, sede da FIFA e Nyon, sede da UEFA, com fugas de informação a fazer de bola. Primeiro, em meados de agosto, foram as ligações de Platini à candidatura do Qatar-2022 a serem expostas num dossier anónimo, enviado a vários media com o sugestivo título «Os esqueletos no armário de Platini». A UEFA, em defesa do seu presidente, exigiu à FIFA uma investigação à «campanha injuriosa» na firme convicção de que os documentos tinham vindo de Zurique.

Em 18 de setembro foi a vez de Jerôme Valcke, secretário-geral da FIFA desde 2007, o ano em que Platini chegou à presidência da UEFA, ser suspenso de funções, depois de documentos, o ligarem a um esquema de revenda ilegal de bilhetes de jogos do Campeonato do Mundo. Valcke reclamou inocência, deixando no ar que Nyon estava por detrás do sucedido.

Menos de uma semana depois, nova mudança de serviço: a arma de arremesso é, desta vez, a verba de 1,8 milhões de euros que a FIFA pagou a Platini, em 2011 (ano chave em todo este processo), por serviços prestados entre 1999 e 2002. Tudo legal, por serviços efetivamente prestados, garantiu o presidente da UEFA - que pouco depois desta cobrança invulgarmente tardia tinha apoiado a reeleição de Blatter para o quarto mandato.

Nada neste processo é particularmente novo, ou surpreendente. Com eleições da FIFA marcadas para 26 de fevereiro, o que tem estado em jogo, entre os nomes falados e os que permanecem na sombra, é um processo seletivo de informação, que, antes de tudo o resto, se destina a provar que quem cair não quer cair sozinho.

Há 41 anos, no filme «O Padrinho II» - que, salvo melhor opinião, tem o processo de legitimação do poder como tema central - Francis Ford Coppola e Mario Puzo explicaram tudo isto de forma bem mais elegante e sucinta pela voz de Al Pacino/Michael Corleone.



A frase - « keep your friends close and your enemies closer» - tem mais impacto em inglês. E assenta como uma luva em estruturas de poder como as da FIFA, onde amigos e inimigos se fundem nos corredores, com palmadas nas costas e música siciliana em fundo.