Artigo publicado originalmente a 11 de abril

Há uns valentes anos fixei uma crónica de Jorge Valdano onde explicava que, muitas vezes, as ações de uma personagem no futebol não correspondem ao seu perfil fora dos relvados. E dava o exemplo de Claudio Ranieri, cujas ideias de jogo detestava: «uma companhia encantadora, um gentleman e um amigo sincero, a quem pedi o favor de nunca me levar a ver jogar a sua equipa», dizia. Justifica-se voltar a esta frase assassina numa altura em que Ranieri está a um passo de desmontar uma imagem de perdedor charmoso, construída ao longo de mais de 20 anos.

Porque a odisseia do Leicester não deixa ninguém indiferente – a iminente conquista do título ínglês será das grandes proezas do desporto mundial nas últimas décadas – é fácil esquecer que o técnico italiano não mudou de ideias nem de métodos de trabalho. Aos 64 anos, seria difícil fazê-lo. E, coerentemente, o seu Leicester - um milagre cósmico de mérito e trabalho, mas também de peças que encaixam no local certo, à hora certa, com todos os astros a ajudar - continua a ser uma equipa profundamente conservadora. Construída para garantir a permanência e para apontar a uma temporada mais sossegada do que a anterior, alimenta-se do contra-ataque, de bolas paradas e, muitas vezes, apesar de um fenómeno chamado Mahrez, de um futebol direto que, no contexto atual, em que Barcelona e Bayern surgem como referências supremas de qualidade, se diria ultrapassado.

E isso importa? Importa mas pouco. Porque, por um lado, dada a diferença de meios para os históricos candidatos ao título e o perfil de jogadores de que dispõe, o Leicester tem todo o direito - o dever, diriam os seus adeptos - de assumir uma identidade e um modelo de jogo condizentes com o estatuto de underdog. Por outro lado porque, Tottenham à parte, as sucessivas demonstrações de incompetência de quem tinha por obrigação apresentar uma identidade mais elaborada – Arsenal, Manchesters e Chelsea – tornam merecida, mesmo que por exclusão de partes, a consagração do outsider. E, por fim, porque o percurso de superação de uma equipa que, há um ano, escapou por um fio à despromoção é tão magnífico e tão old school que mesmo os puristas do futebol de posse e construção se deixam contagiar, justificadamente, pelo entusiasmo.

A moral da história é que o modelo de jogo é fundamental, sim. Mas só quando a história por detrás dele não é ainda mais importante. Este solidário Leicester que, em campo – como a Grécia de 2004 – pouco tem para ensinar, à parte os valores sacrossantos da intensidade e da superação, devolve-nos o gosto de contar histórias à moda antiga, com o futebol como pretexto. E isso, que é imenso, vale bem um titulo de campeão.