Há uma cena no filme Annie Hall em que Woody Allen se sente agredido. Atrás de si, numa fila para o cinema, um chato levanta a voz e recorre a uma série de citações distorcidas do intelectual Marshall McLuhan para impressionar a mulher que o acompanha. Em vez de prolongar a discussão com o agressor, num momento de magia só possível no cinema, o herói dá dois passos ao lado e chama o próprio McLuhan, que por acaso estava ali à mão, atrás de um painel. Igualmente irritado, McLuhan desautoriza o chato, chama-lhe incompetente e acusa-o de não ter percebido nada das suas teorias, dando razão a Allen. E este encerra a cena com um desabafo e um olhar cúmplice dirigido ao espectador: «Ah, se ao menos a vida real fosse assim...»

Lembrei-me disto na madrugada de domingo quando, depois dos penáltis da eliminação portuguesa no Mundial de sub-20, dei por mim a desejar ter Antonin Panenka à mão de semear. Se a vida fosse como no cinema, eu poderia puxá-lo pelo bigode e pô-lo a explicar à juventude - infelizmente, já cheguei à fase em que «juventude» engloba toda e qualquer pessoa com menos de 40 anos – o que há de errado com a enxurrada de cópias da sua criação de 1976.

E o que há de errado, diria Panenka, é, simplesmente, o efeito da banalização, como uma piada fantástica a perder graça, por ser contada demasiadas vezes. Tal como as patilhas e as calças à boca de sino, a criação do médio checo, também chamada cavadinha, ou cucchiaio, é um produto do seu tempo. E esse era um tempo sem redes sociais, em que golos e penáltis passavam a conta-gotas na televisão, e em que as inovações técnicas demoravam anos, ou mesmo décadas, a generalizar-se. Nessa altura, a lenda dos Panenkas era ampliada pela raridade e fazia todo o sentido.

Como sabemos, o efeito de aceleração, com o contributo decisivo da internet, é exponencial: aposto que nos últimos três anos o gesto de Panenka foi imitado mais vezes do que nos 30 que separam o Panenka de Panenka, na final do Euro-76 e o Panenka de Zidane, na final do Mundial-2006.  Basta uma pesquisa apressada no Youtube para nos depararmos com Panenkas perfeitos, Panenkas ridículos, antologias de Panenkas gloriosos, compilações de Panenkas grosseiros, e remixes de Panenkas vitoriosos, ou falhados, para lá de uma excelente revista que o promoveu a título.

E isto quer dizer apenas uma coisa: que nos últimos anos tem havido Panenkas a mais, desde os tempos em que as réplicas, suficientemente espaçadas, de Totti, Djalminha, Postiga ou Loco Abreu, entre outros, serviam para alimentar a chama e deixar entreaberta a porta da loucura.


Agora, o que era loucura a conta-gotas transformou-se num acessório. Um pin supostamente irreverente, produzido em massa, para pendurar ao peito e exibir nos desempates. Um cliché para a rebeldia autorizada, como as t-shirts do Che em festivais. Nesse contexto, a péssima tentativa de Raphael Guzzo, no jogo de Hamilton com o Brasil, longe de fazer do médio português um caso especialmente criticável ou ridículo, transforma-o apenas na mais recente fashion victim dos relvados.  

Por tudo isto, e não podendo puxar Panenka pelo bigode para o pôr a dizer estas coisas, resta-me o plano B: propor a criação de uma moratória nos regulamentos, que penalize os penaltis à Panenka por um determinado lapso de tempo. Digamos, por hipótese, que nos próximos cinco anos qualquer tentativa de imitação do checo passe a ser punida com autogolo – dois autogolos, no caso de a tentativa ser falhada.

Como em tudo o que diz respeito à moda, esta não é uma sentença definitiva, claro: o mau gosto de hoje é o kitsch irónico e pós-moderno de amanhã. Assim, a pena estaria em vigor apenas durante o tempo necessário para a coisa voltar a parecer-nos surpreendente e revolucionária. Se o deixarmos sossegado, o penálti à Panenka ressurgirá, então, num dia de nevoeiro, em todo o seu esplendor. Como os bigodes, as patilhas, ou mesmo as calças à boca de sino. Por agora, tentem esquecê-lo. Como diriam os Monty Python,  You're No Fun Anymore.