«Quem vem da equipa B, se não for um prodígio, não está preparado para jogar na A. Desculpem. Desculpem. Tirando os prodígios, precisas de 50 jogos, no mínimo, de equipa B para dar resposta numa equipa A do Benfica.»

O princípio foi defendido por Renato Paiva, em 2021. Desde então que aquelas palavras me martelam a cabeça sem que nunca meio milímetro de alguma me tenha entrado com sentido. Kyle Walker celebra já a sexta época junto de Pep Guardiola e eu também continuo sem achar indícios de lógica nesta amizade - isto só para atestar que ser guardiolista é diferente de pertencer a um chafardel de carneiros e que a partir do momento em que ousas colocar em causa as opções do melhor treinador da História do jogo, assumes-te ousado para colocar em causa qualquer uma das suas meras testemunhas.

Apontar nomes de jogadores para refutar a tese de Renato Paiva seria um exercício fácil, mas preguiçoso, pois, tal como a própria tese, ignoraria o traço mais vincado do futebol, que é o de ter uma natureza colectiva.

A tentativa de projectar o sucesso ou o insucesso de uma resposta individual, num contexto de alto nível, partindo de um número de jogos realizados, num contexto de nível abaixo, é bizarra. Desde logo, transmite a falsa sensação de que qualquer jogador que cumpra os tais 50 jogos na equipa B, estará mais preparado para vingar na equipa A, colocando o ónus numa quantidade sempre desprovida de riqueza conjuntural. Não é a repetição que, per se, arma os atletas de melhores ferramentas. A imprevisibilidade proporcionada por um jogo de futebol, faz com que quem procura aperfeiçoar a sua prática descubra mais dificuldades e exigências do que quem procura aperfeiçoar a cobrança de livres directos, por isso é que um exímio batedor de livres directos - ou um excelente driblador, ou um tecnicista formidável - não passa a ser um jogador de futebol exímio. As valências individuais são úteis se bem aplicadas no jogo, porque a agilidade de um malabarista de nada serve no xadrez.

Se, em 50 jogos, um defesa-central da equipa B do Benfica for estimulado, sobretudo, para, em zonas de construção, procurar o ponta-de-lança ou o extremo do lado contrário através do passe longo, de que forma estará a ser preparado para dar resposta numa equipa A do Benfica, onde lhe vão pedir para tentar bater a pressão do adversário através do passe vertical para os médios, para um dos extremos que baixa dentro ou para o avançado que recua em apoio? Estou a idealizar um cenário de equipa B em que a equipa nem sequer se prepara para lhe oferecer condições para esse passe vertical, ou seja, um cenário em que o defesa-central é mais vítima do que culpado. Nesta perspectiva, não há potencial para que os 50 jogos na equipa B sejam mais prejudiciais do que benéficos na evolução do defesa-central em causa? De que é que lhe valeram os 50 jogos em que viu serem-lhe amarradas as suas principais virtudes?

Se, em 50 jogos, um lateral da equipa B do Benfica for estimulado, sobretudo, para, com bola, procurar a linha-de-fundo e cruzar, de que forma estará a ser preparado para dar resposta numa equipa A do Benfica, onde lhe vão pedir para invadir zonas interiores, evitar o cruzamento sem critério, procurar tabelar para ganhar vantagens no corredor? Estou a idealizar um cenário de equipa B em que a equipa nem sequer se prepara para responder a cruzamentos, coloca dois um três jogadores em zona de finalização, mas apenas um com argumentos no jogo aéreo, além de trabalhar pouco a jogada, o que faz com que o adversário esteja invariavelmente organizado, ou seja, um cenário em que o lateral é mais vítima do que culpado. Nesta perspectiva, não há potencial para que os 50 jogos na equipa B sejam mais prejudiciais do que benéficos na evolução do lateral em causa? De que é que lhe valeram os 50 jogos em que viu serem-lhe amarradas as suas principais virtudes?

Há jogadores que tardaram em afirmar-se por culpa de repetições que não se adequavam às suas características - sim, vou continuar a mencionar João Félix - e outros cujo desenvolvimento também se deveu aos companheiros que encontraram dentro de campo - o feliz envolvimento de Messi, numa fase inicial da sua carreira, com Xavi e Iniesta ajudou-o a sofisticar vários aspectos do seu jogo. A confiança que um treinador transmite a um jogador, as ideias que pretende pôr em prática, as preferências face a inúmeros perfis individuais, o talento individual, a estrutura mental do jogador, as melhores ou piores sociedades que nascem dentro de um sistema, o nível competitivo da Liga - todos estes parâmetros me soam mais preponderantes no sucesso ou no sucesso de uma resposta do que o número de jogos cumpridos numa equipa B.

Analisando cada um deles, fica fácil concluir que João Neves, com apenas 11 jogos ao serviço da equipa B do Benfica, pode estar perante um bom contexto para dar o salto. Primeiro, sem ter de tolerar mais treinos de Luís Castro, segundo, sem cumprir a fatalista participação no carrossel dos empréstimos (prática mui nobre que gostar de transformar um ‘vais ter de te desenrascar’, num ‘isto é para o teu bem’). Talento não lhe falta, já que até do terceiro anel se pode apreciar o vasto repertório no gesto técnico mais importante do futebol, o passe. Ao passe junta intenção, visão de jogo, boa gestão dos ritmos, boa qualidade de execução. Tem, além disto, outra característica muito apreciada por Roger Schmidt - e pelo terceiro anel -, que é a abnegação sem bola quer a defender, que se exprime na forma como se predispõe nas divididas, como se mostra capaz de cobrir espaços grandes ou como adora incomodar o portador adversário, quer a atacar, que se releva na busca incessante por dar linhas de passe aos colegas ou no entendimento se é o momento de pedir no pé ou de se movimentar para abrir espaços. Em princípio, tendo em conta o número de minutos concedidos a um e a outro, João Neves parte à frente de Cher Ndour nas preferências do treinador alemão, que também foi generoso nos elogios após a estreia a titular, frente ao Estoril. Quanto ao nível da Liga Portuguesa, resta-me dizer que é a Liga que fica mais rica caso João Neves faça parte dela, aplicando uma máxima que usei para defender a aposta em Vitinha, Fábio Vieira, Daniel Bragança e tantos outros, como Afonso Sousa ou Tiago Dantas, que não vimos vingar nesta poderosíssima competição, famosa por dar palco a tantos jogadores com dois pés esquerdos.

Gostava que o Benfica terminasse a temporada com um meio-campo composto por Florentino e João Neves e de voltar a entrevistar Renato Paiva.

* a autora escreve com o acordo ortográfico antigo