«CHUTEIRAS PRETAS» é um espaço de Opinião do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Um olhar assumidamente ingénuo sobre o fenómeno do futebol. Às quintas-feiras, de quinze em quinze dias. Pode seguir o autor no Twitter. Calce as «CHUTEIRAS PRETAS».

Há uma cena tão maravilhosa quanto perturbante no filme A Vida é Bela que não me sai da cabeça. Guido Orefice (Roberto Benigni) é levado com o filho Giosué (Giorgio Cantarini) pelos soldados da Alemanha Nazi para um comboio de mercadorias. Destino: um campo de concentração.

Quem viu o filme – se está a ler este texto e não o viu, por favor, aproveite o #FicaEmCasa e corrija assim que puder esse lapso – sabe que Guido usou os mais engenhosos, ternurentos e hilariantes argumentos para nunca deixar que Giosué soubesse o que se estava a passar.

Sim, havia uma II Guerra Mundial. Sim, a família Orefice era judaica e tinha sido identificada pelos vómitos do Terceiro Reich. Sim, Guido e Giosué iam ser transportados para um inominável centro de detenção.

E o que faz Guido, o pai, para a que o coração daquele menino de cinco/seis anos nada sofra, nada detete? Inventa um jogo e constrói uma narrativa de extraordinária humanidade e amor.

Para o pequeno Giosué, o objetivo é simples: chegar aos 100 pontos e ganhar um tanque de guerra. E é assim que pai e filho, de mão dada, entram no comboio da morte.  

- ‘Nunca andaste de comboio, pois não? É fantástico! Toda a gente de pé, pertinho uns dos outros, e não há lugares sentados.’

- ‘Não há lugares sentados?’

- ‘Lugares sentados? Num comboio? Vê-se mesmo que nunca andaste de comboio. Não, toda a gente fica de pé, toda a gente apertada. Olha, esta é a nossa fila. Ei, ei, temos bilhetes, guardem espaço para nós!’

Um pai faz tudo por um filho. Faz tudo por quem ama, por quem pode. Nestes dias negros, podemos e devemos parar e refletir sobre tudo aquilo que temos por garantido. O mundo faz-nos falta e este mundo, com todas as suas imperfeições, está a ser colocado pela primeira vez em causa às nossas gerações.

A certeza do primeiro café e de sair de casa para o emprego; o privilégio de ver o mar e beber uma cerveja bem fresca; os nossos pais que nos telefonam e nos dizem para comermos bem e levarmos agasalhos; os nossos filhos que acordam aos berros, passam os dias aos berros e berram antes de dormir, mas que quando sorriem são capazes de nos deixar o coração aos pulos; chegar a casa e termos a mulher que amamos à nossa espera; marcar uma futebolada ou um ténis com os amigos de sempre. Que vida tão bela nós temos. Uma vida tantas vezes maltratada pela mesquinhez sem sentido, o ciúme, a imperfeição que vemos nos outros e que os outros vêem não se sabe bem como em nós.

Que esta pandemia nos ajude a lembrar do que é essencial. Os outros, estar com os outros, celebrar-nos com os outros. Quanto a mim, tentarei ser um pouco de Guido para os meus Giosués.

No fim deste pesadelo sem paralelo, acreditem, vamos chegar aos 100 pontos e ganhar o nosso tanque de guerra. ‘Abbiamo vinto!’

   

«CHUTEIRAS PRETAS» é um espaço de Opinião do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Um olhar assumidamente ingénuo sobre o fenómeno do futebol. Às quintas-feiras, de quinze em quinze dias. Pode seguir o autor no Twitter. Calce as «CHUTEIRAS PRETAS».  

 

Artigo originalmente publicado às 23:45 de 16-03-2020