«CHUTEIRAS PRETAS» é um espaço de Opinião do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Um olhar assumidamente ingénuo sobre o fenómeno do futebol. Às quintas-feiras, de quinze em quinze dias. Pode seguir o autor no Twitter. Calce as «CHUTEIRAS PRETAS».

Cada vitória maratoniana de Rafa Nadal é um livro de auto-ajuda. O maiorquino não salta nenhum capítulo e conta-nos, de cor e salteado, como superar a mais injusta e longa das privações.

1. Vai ao limite da fé;
2. Cerra os dentes e faz um ponto extraordinário em forma de milagre;
3. Recupera um jogo já dado por perdido;
4. Impõe a tua voz, grita mais do que aquele que te ouve;
5. Ganha por ti e pelos que te seguem há anos.

Nadal é um dos raros desportistas contemporâneos, de resto, que já parece ser meu familiar.

Uma final com Rafa é uma ótima desculpa para mudar os planos familiares, interromper as questões domésticas e ligar a televisão com a urgência de quem transporta um primo ou um tio ao hospital.

Há homens assim, mas poucos. Escassos. Agarram-se aos nossos dias, obrigam-nos a tê-los na memória e a fixar o onde, o como e o quando.

Rafa é um deles, como a inesquecível final do US Open provou, mas há mais.

Ayrton Senna era assim. Onde estava eu no dia da sua revoltante morte? Na cozinha da casa dos meus avós, sentado numa cadeira dura, num silêncio só quebrado pelo narrador e os motores em Ímola.

D10S Maradona, claro. Quando o conheci? Num Argentina-Coreia do Sul do Mundial de 1986, numa casa cheia de amigos de boca aberta, em Pedras Rubras. Fomos logo à caderneta confirmar tudo: nome, data de nascimento, posição, clube.

Federer também. E não, não há engano nenhum. Assumo-me Federeriano, a torcer por Roger desde 2005, e ao mesmo tempo apaixonado pelo ténis de Rafa Nadal.

Onde me declarei ao suíço? Na redação do saudoso Comércio do Porto, julho de 2005, durante uma final de Wimbledon [fui confirmar o adversário, foi Andy Roddick].

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Senna, Maradona, Federer, Michael Jordan também, Lance Armstrong foi riscado da lista, e agora, cada vez mais, Rafa Nadal. Falo de ídolos, claro.

A gentileza de Federer sempre me puxou mais para o lado de Roger, mas Nadal já é muito mais do que a energia inesgotável, a dinamite do braço esquerdo. Rafa é o tenista completo, a muralha física e mental, o rapaz simpático e capaz de esperar pelo jornalista português.

Era aqui que pretendia chegar desde o início. Desculpem as voltas e os erros não forçados no meu jogo de serviço. Vou contar-vos uma história sobre Rafa Nadal, porque Rafa merece que isto se saiba.

Em julho de 2016, e por mera coincidência, viajei no mesmo avião de Nadal para os Jogos do Rio de Janeiro. Ainda no Porto, numa fila, abordei-o e solicitei uma entrevista. A sorrir, o Rafa lá disse que no final da viagem, já no Brasil, falaria comigo.

Durante a viagem, a sobrevoar o Atlântico, nunca o vi. Ele estava em executiva, eu em económica. Pensei, naturalmente, que Nadal se esqueceria da palavra dada e que fugiria do repórter atrevido mal o visse em solo carioca.

O avião aterrou, dirigi-me para a zona das bagagens e depois para uma área onde atletas e jornalistas levantavam as credenciais. Ao chegar aí comecei a ver Rafa Nadal, com mais um colega ao lado [era David Ferrer, outro tenista].

Sorri para ele, sem saber bem como cobrar o apalavrado, e Rafa foi o que eu desejava que ele fosse: um cavalheiro de simplicidade desarmante.

«Amigo, pode ser aqui? Acho que vamos esperar uns bons minutos pelas nossas credenciais.» Deu nisto.   
 
Eu, radical Federeriano, rendi-me a Nadal. Há espaço para os dois na sala cá de casa.   

«CHUTEIRAS PRETAS» é um espaço de Opinião do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Um olhar assumidamente ingénuo sobre o fenómeno do futebol. Às quintas-feiras, de quinze em quinze dias. Pode seguir o autor no Twitter. Calce as «CHUTEIRAS PRETAS».