«CHUTEIRAS PRETAS» é um espaço de Opinião do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Um olhar assumidamente ingénuo sobre o fenómeno do futebol. Às quintas-feiras, de quinze em quinze dias. Pode seguir o autor no Twitter. Calce as «CHUTEIRAS PRETAS».

«Assistimos pela primeira vez na história do Homem a uma tentativa de homicídio por meios audiovisuais.»

O absurdo e o futebol português não se dão mal. Há carimbos fraudulentos, conversas off the record na capa dos jornais, túneis sem luz à vista, jogos duplos de cara feia, pancada de meia noite às três da tarde, assassinatos tentados na difusão de programas televisivos.

1997, 2 de maio, António Oliveira dá entrada no serviço de urgências do Hospital de Gaia. Sintomas? Aperto intenso nas coronárias. Causa? Stress provocado pelo visionamento de uma reportagem da SIC sobre o escabrosamente famoso «Caso Paula».

À porta da unidade hospitalar, o então médico do FC Porto, José Carlos Esteves, amaldiçoa o polémico programa Donos da Bola, que de bola pouco falava, na verdade.

É de Esteves a afirmação que abre o texto.

Lembrei-me dela a propósito do recente Benfica-FC Porto. Mais em concreto, a propósito do aproveitamento da transmissão televisiva desse jogo por parte da equipa da casa.

Se dúvidas em mim havia, principalmente pela seriedade e honestidade intelectual que alguns excelentes jornalistas do canal me merecem - João Martins, Ricardo Soares, Hélder Conduto, homens e profissionais de cinco estrelas -, essas dúvidas desapareceram e passo a ser radicalmente contra.

Contra o quê? O direito de um clube transmitir na sua própria televisão um jogo de futebol profissional.

Podemos falar de repetições camufladas ou escondidas, ângulos mais ou menos abertos, comentários apenas infelizes ou maldosos. Podemos, mas nem vou por aí. O que me traz aqui é outra preocupação.

A possibilidade de gerir a transmissão de um jogo dá a esse clube as armas que os outros não têm. Permite-lhe, por exemplo, apontar uma das câmaras em direção ao banco de suplentes do adversário durante 90 minutos.

90 minutos de imagens sobre um banco, vejam bem. No final é só fazer um breve resumo dos momentos mais escaldantes, das reações mais ou menos estapafúrdias, e difundi-lo, com banda sonora apropriada, desassombradamente para este país dividido entre fanáticos e incréus. E daí procurar dividendos.

É fácil, muito fácil, perceber a estratégia. E desmontá-la, claro. Eu, enquanto consumir do fenómeno, até posso lançar a pergunta: e as imagens do banco de suplentes do Benfica, por onde andam? Existem?

A isto chama-se instrumentalização.

Dar-me-ia muito mais prazer estar aqui a escrever sobre o fantástico Desp. Chaves-V. Guimarães ou até elogiar o brilhante trabalho de Nuno Manta no Feirense, mas é precisamente a pensar neles e nos seus clubes, que estão privados do acesso a esta armadilha mediática, que o faço.

Se os canais de televisão de FC Porto e Sporting tivessem o direito de transmitir jogos da Liga fariam o mesmo? Provavelmente sim, não sei. Sei é que teriam armas que os mais pequenos não têm. E usá-las-iam em proveito próprio. Como sempre.

A Liga autóctone não pode caminhar de mão dada com o absurdo. Se o fizer, estaremos a um passo de uma tentativa de homicídio ao futebol por meios audiovisuais.

Não há coronária que resista a tamanho stress.

«CHUTEIRAS PRETAS» é um espaço de Opinião do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Um olhar assumidamente ingénuo sobre o fenómeno do futebol. Às quintas-feiras, de quinze em quinze dias. Pode seguir o autor no Twitter. Calce as «CHUTEIRAS PRETAS».