«CHUTEIRAS PRETAS» é um espaço de Opinião do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Um olhar assumidamente ingénuo sobre o fenómeno do futebol. Às quintas-feiras, de quinze em quinze dias. Pode seguir o autor no Twitter. Calce as «CHUTEIRAS PRETAS».
Não há muitas coisas mais feias do que pontapear um homem ferido. Sem grandes hesitações, qualquer um de nós apelidaria esse tipo de agressor como ‘cobarde’. É a velha máxima do ‘forte com os fracos, fraco com os fortes’. Abominável.
Haverá homem mais ferido do que o que ainda chora a perda de uma filha? Haverá homem mais ferido do que aquele que – ó injustiça! – ao mesmo tempo enfrenta a gravidade cruel de uma doença oncológica?
Fernando Gomes, o eterno Bibota, foi fustigado pela vida ao longo do último ano. Suportou duas pancadas que ninguém deveria ter de sofrer e está a reerguer-se. Pouco a pouco, amparado à família, a um bebé nascido há poucos meses e ao seu FC Porto.
Foi a um homem nestas condições, compreensivelmente fragilizado e talvez sem energia ou vontade para ripostar, que o senhor Manuel José lançou um ataque de caráter e personalidade na passada semana. No canal público e sem direito a contraditório.
As palavras, difíceis de adjetivar tal a baixeza da forma e do conteúdo, foram estas: «Este senhor [Fernando Gomes], ao fim de 23 anos, regressou ao FC Porto por necessidade. Fazer um discurso destes [elogio a Pinto da Costa], agora? Fernando, se me estiveres a ver ou a ouvir, a palavra dignidade desapareceu do teu vocabulário. E quando olhas para o espelho, não tens vergonha de te ver ao espelho?»
Os 74 anos e os cabelos brancos de Manuel José aconselhariam o juízo e a educação que a boca não é capaz de lhe dar. O ódio que assumidamente sente por Pinto da Costa e pelo FC Porto levaram-no a achar que seria boa ideia utilizar Fernando Gomes como saco de porrada. Poucas vezes me senti tão incomodado a ver um programa televisivo. Uma ignomínia nojenta.
Fernando Mendes Soares Gomes não precisa da minha ajuda para defendê-lo, até porque já o fez com a serenidade e a elegância dos que caminham todos os dias de consciência limpa. Ainda assim, gostava muito que os leitores mais jovens do Maisfutebol soubessem quem é Fernando Gomes.
Gomes é, muito provavelmente – e nisso Manuel José acertou – a maior figura viva do FC Porto, a seguir a Pinto da Costa (ao top-5 juntaria João Pinto, Vítor Baía e Jorge Costa). Jogou 450 vezes na equipa principal, marcou 355 golos, foi duas vezes o melhor marcador na Europa, campeão europeu e mundial em 1987 pelos dragões, 47 internacionalizações/11 golos ao serviço da Seleção Nacional – com presença no Euro84 e Mundial86.
A 22 de janeiro de 1989 fez 30 minutos em Espinho e foi substituído pelo menino Domingos Paciência. Despediu-se do FC Porto, enquanto futebolista, no relvado do velhinho Manuel Violas. Ainda esteve em três jogos como suplente não utilizado, até ao problema grave com Octávio Machado no Funchal, a 17 de fevereiro de 1989.
Mesmo nesse incidente, Fernando Gomes demonstrou o Homem que é. Na primeira pessoa, poucos dias depois, teve a coragem de aparecer no Domingo Desportivo e assumir tudo, ‘tintim por tintim’.
O inquérito disciplinar atirou Gomes para fora do FC Porto. Foi contratado pelo Sporting no verão de 1989, quando o treinador dos leões era… Manuel José. Gomes ainda fez 79 jogos/38 golos pelos leões em duas temporadas e abandonou os relvados aos 34 anos. No dia 26 de maio de 1991 marcou ao Gil Vicente e disse adeus. Um dos melhores avançados de sempre.
Acredito que Manuel José já se terá arrependido do que disse. Um pedido de desculpas público é o mínimo que se lhe exige.
PS1: não falo com Fernando Gomes há mais de 20 anos. Na minha infância, acostumei-me a vê-lo a tomar café nas Piscinas do FC Pedras Rubras. Os putos chegavam e Gomes tinha sempre paciência para tirar fotografias e dar autógrafos, num tempo em que a internet não existia e os ídolos se faziam de atitudes reais. Anos mais tarde, por volta de 1998/1999, fui convidado no verão a encaixar num grupo que jogava uma futebolada sempre às segundas à noite, também em Pedras Rubras. Um dos elementos do plantel sazonal era, precisamente, Fernando Gomes. Tinha pouco mais de 40 anos e ainda jogava muito. No final ficava a falar connosco, explicava como se punha o pé direito na bola quando era para rematar em força ou em jeito, contava uma ou outra história do balneário, bebia um fino antes de ir para casa. Sempre afável, sempre acessível e simples. Caro Fernando, muita saúde. O seu melhor golo ainda não aconteceu.
«CHUTEIRAS PRETAS» é um espaço de Opinião do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Um olhar assumidamente ingénuo sobre o fenómeno do futebol. Às quintas-feiras, de quinze em quinze dias. Pode seguir o autor no Twitter. Calce as «CHUTEIRAS PRETAS».