Por gostar do simbólico olhei com mais atenção para o Estados Unidos-México de qualificação para o Mundial. Três dias depois da eleição de Donald Trump, já Miguel Layún simbolicamente atirava pedras ao muro que o 45.º presidente dos EUA quer construir como medida-emblema da sua política de segregação.

Aliás, por gostar do simbólico, além do remate e da assistência com que Layún comandou um México com três mosqueteiros portistas (quatro, como no romance de Dumas, já que além de Herrera e Corona jogou ainda o emprestado Reyes), atentei no local do triunfo forasteiro: aconteceu no Ohio, swing state no coração do Rust Belt americano, onde se decidiram as eleições que podem mudar o mundo.

Para a América de Trump, a maior derrota aconteceu antes do jogo. Ainda o apito inicial não havia soado e já a intolerância perdia de goleada quando os jogadores das duas seleções se abraçaram para uma fotografia em conjunto, sem muros, ainda que imaginários, que os separassem.

O simbolismo, porém, vai para lá dos limites do soccer e daquele duelo de vizinhos em Columbus.

No dia das eleições, Barack Obama juntou um grupo de amigos numa base militar nos arredores de Washington para jogar basquetebol, repetindo o ritual das eleições de 2008 e 2012.

Quando alguma decisão importante se aproxima, Obama refugia-se no desporto que jogou nos tempos de liceu no Hawaii, paixão que continuou a cultivar nos backyards de Chicago, semelhantes àquele em que transformou o court de ténis na Casa Branca assim que chegou à presidência.

Obama, canhoto no lançamento, é basquetebol: um desporto tecnicista e competitivo, onde a ação individual, por mais brilhante que seja, nunca se sobrepõe ao coletivo. Um desporto de arte, inteligência e estratégia, onde o contacto físico é quase sempre leal.

Se Obama é basquetebol, o melhor jogo que a América inventou e em cujo poderio a fez admirada em todo o mundo, Trump é wrestling, essa modalidade que a faz virar para o pior de si mesma explorando os seus valores mais frívolos

A última vez em que o agora presidente eleito apareceu a praticar algo parecido com um desporto foi em 2007, num evento da Wrestlemania, a chamada «Batalha dos Bilionários»: o magnata da construção surgiu de surpresa do lado de fora do ringue a tentar desajeitadamente simular uma agressão a Vince McMahon, dono da WWE, perante o delírio do público.

Trump está para a política como o wrestling está para o desporto: um histerismo em modo de simulacro, uma encenação de violência gratuita com uns pós de telenovela, sem a nobreza ou honestidade do boxe ou de qualquer desporto de combate que se preze. No fundo, uma súmula de narcisismo e a promoção do ódio estéril para gerar dólares – business as usual.

Num palanque, o discurso irresponsável, xenófobo, racista, misógino, de um mitómano egocêntrico convertido em ser quase inimputável, encontra respaldo à volta do ringue naquela modalidade-espetáculo, meio infantiloide, numa das mais populares celebrações da estupidificação que nos conseguem vender.

Só um país como os Estados Unidos é capaz de produzir e potenciar tanto o basquetebol como o wrestling. Só um país como os Estados Unidos é capaz de eleger Obama e de seguida Trump. Que paradoxo, América...

Dentro de dois meses, sai Barack Obama, entra Donald Trump. Muito provavelmente, estamos perante uma das piores substituições da história da humanidade.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.