Subir ao palco como quem chega ao café da vizinhança e bater com a mão no palanque dizendo num português ligeiramente adocicado pelo sotaque madeirense «Coisa linda». Notar publicamente a ausência dos rivais, sem grandes pruridos diplomáticos, e entre uma coisa e outra, em sinal de gratidão pública, confortar um velho companheiro de estrada: «Mister, fica para a próxima.»

Digam-me: há como não gostar disto?

Idolatrar superestrelas não faz parte nem do meu ofício ou sequer feitio. Embirro, aliás, com repórteres que se esforçam por uma intimidade plástica quando as tratam por tu – como quem se põe em bicos de pés proclamando para o público: «Veem como na escada da fama estou num degrau suficientemente elevado para ser íntimo deste herói?» – e sobretudo pelos que tratam o termo «o melhor do mundo» como sinónimo de Cristiano Ronaldo – não, meus caros, o rigor a que a vossa profissão vos obriga permite-vos usar a expressão só e quando ele efetivamente ganhar o prémio de melhor futebolista do ano.

No entanto, com sinceridade confesso o que só com o tempo fui consolidando: apesar de abrir mais vezes a boca de espanto quando Messi toca na bola, quem me faz arrepiar a pele é Cristiano Ronaldo. E é aí que a portugalidade entra na minha equação sentimental.

Cristiano Ronaldo trabalha com a eficiência de um alemão, celebra a fama e o sucesso como uma superestrela norte-americana e nas pequenas coisas continua a ser tão português como qualquer um de nós.

Faz questão disso mesmo quando, nos momentos de consagração, sobe ao palco e agradece na língua de Camões; e fazendo-o sublinha o papel da mãe, da família e dos amigos de sempre, num apego às origens próprio de quem não vive deslumbrado. Fá-lo quando chora de frustração por ter de abandonar a grande batalha de Saint-Denis, beijado por uma traça num dos momentos mais poéticos (e arrepiantes, lá está) das minhas memórias futebolísticas. Quando entre risos e lágrimas de alegria confessa no balneário que uma conquista por Portugal «é o momento mais feliz da vida» com uma autenticidade à prova de qualquer dúvida.

Ronaldo pode ser justificadamente vaidoso num país de falsos modestos, pode ser frontal entre dissimulados, pode ser ambicioso enquanto muitos em condições semelhantes se acomodam ao «já basta assim». E apesar da aparente dissonância entre o grande embaixador e as características do povo que representa, não obstante os luxos e a fama, nos pequenos gestos, Ronaldo é tão português como qualquer outro emigrante que tem como objetivo primeiro pegar nos galardões que ganhou lá fora e os traz para mostrar na sua terra.

O rapaz tímido que viveu no quarto 34 da pensão Dom José, na lisboeta Avenida Duque de Loulé, é hoje dono de uma cadeia de hotéis. O miúdo que aprendeu a jogar na rua a pique do Caminho do Lombo, na freguesia funchalense de Santo António, brilha hoje aqui ao lado no Bernabéu ou do outro lado do mundo, em Yokohama, porque ao talento juntou trabalho.

Num billboard da 5.ª Avenida ou no dorso de um miúdo numa remota aldeia africana, o seu nome serve até de «pé de cabra» para abrir as relações comerciais entre Portugal e a Índia: vejam há dias António Costa em visita oficial a oferecer a camisola 7 com o nome de Ronaldo ao seu homólogo Narendra Modi… Compreendemos que faz sentido que assim seja quando o vemos reconquistar o prémio de melhor do mundo e, tal como sempre, agradecer naquele português adocicado pelo sotaque madeirense, percebendo que o faz com gosto.

Parabéns, Cristiano! Que «coisa linda» é podermo-nos orgulhar do embaixador que nos calhou em sorte.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.