Madrid é uma cidade dividida.

Do chafariz da praça da deusa Cibeles ainda jorram salpicos de euforia por um fim-de-semana de celebração pela undécima do Real.

Um quilómetro abaixo, na fonte da praça do deus Neptuno, como que brotam lágrimas por mais uma final pedida pelo Atlético.

Se no Paseo de la Castellana se ostenta a glória merengue do clube mais triunfal do mundo do futebol, nas margens do Manzanares afogam-se as mágoas colchoneras por mais uma oportunidade perdida para chegar ao topo da Europa. E logo contra o rival eterno. Logo pela segunda vez em dois anos. Logo na lotaria dos penáltis.

Madrid é uma cidade dividida, como é Espanha a um mês de eleições gerais, após meio ano de indefinição política.

A capital é uma cidade que se divide em discussões como a lançada há meses pela alcaldesa Maria Carmena, eleita pela coligação Ahora Madrid, apoiada pelo Podemos.

A proposta, já aprovada por maioria na autarquia, é simples: cumprir a Lei da Memória Histórica e retirar qualquer referência toponímica ao franquismo.

Seis meses para trocar o nome a 148 ruas, 11 avenidas, 20 praças, três monumentos, dois institutos, dois colégios, dois parques e um jardim. Da cidade desaparecerão referências a personalidades sombrias da sangrenta Guerra Civil, como os generais Moscardó ou Yagüe, o «Carniceiro de Badajoz».

Serão também retiradas expressões popularizadas pelos falangistas: «Caudillo», «Arriba España» ou «Caídos de la División Azul», unidade de voluntários que para retribuir o apoio no conflito espanhol combateu do lado nazi na II Guerra Mundial sob as ordens do General Muñoz Grandes.

Ao longo das quase seis décadas em que se tornou no mais titulado clube do futebol europeu, o Real Madrid ganhou fama de clube de direita, ligado ao franquismo.

Juan Aparicio Belmonte, escritor e madridista, resgata no seu recente livro «Ante todo criminal» algum do passado esquerdista do Real Madrid.

Em 1931, o clube incluiu no seu emblema uma faixa roxa, símbolo da Segunda República, que só virou azul em 2001. Além disso, Sánchez-Guerra, presidente madridista entre 1935 e 1936, foi até condenado a prisão perpétua pela ditadura fascista espanhola que resultou do pós-guerra. Aliás, defende Belmonte, se houve clube da preferência de Francisco Franco, esse foi o Atlético Aviación, uma fusão do Atlético de Madrid que durou entre 1939 e 1947 e que era controlado por altas patentes da aviação franquista. No entanto, embora em nada se compare nesse aspeto ao Rayo, orgulho do bairro operário de Vallecas, o Atlético tem mais fama de ser de esquerda e o Real de direita.

Esta perceção tem uma explicação: Santiago Bernabéu.

Se o Real Madrid comemorou no último fim-de-semana o 11.º título de campeão da Europa é porque na era-Bernabéu venceu o troféu por seis vezes, com o regime a tirar daí o devido proveito.

Em 1943, o antigo jogador e treinador do clube foi imposto pelo governo franquista como presidente do Real Madrid. Saiu do cadeirão só quando faleceu, em 1978, após em três décadas e meia ter transformado uma equipa que lutava pela manutenção no mais consagrado clube da história do futebol.

Antes de se tornar presidente de sucesso e de construir e batizar com o seu nome o estádio que se tornou num dos ex-líbris da capital espanhola, Bernabéu serviu às ordens de Muñoz Grandes, o tal da División Azul, – outro dos que deixará de ter placa evocativa num passeio de Madrid – participando no ataque que sitiou as tropas republicanas na Catalunha, marcando início do fim da sangrenta Guerra Civil Espanhola.

Em março de 1939, o exército franquista avançava sobre a Avenida Diagonal, no coração de Barcelona. Entre os soldados que juraram fidelidade ao «Caudillo» Francisco Franco marchava, triunfal, Santiago Bernabéu.

E se além de praças, ruas e parques também o nome do estádio do Real Madrid fosse ilegal?

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.