Talvez a melhor expressão para definir Diogo Jota tenha sido inventada há umas décadas, muito antes dele nascer, por um dos mais ilustres cidadãos de Liverpool.

«Working class hero», como cantava John Lennon, assenta bem no perfil de antivedeta de quem vindo de Gondomar conquistou a pulso o seu lugar num dos mais distintos clubes do futebol mundial.

Diogo é uma improbabilidade do futebol moderno, desde que há uma década despontou em Paços de Ferreira, depois de escapar ao radar dos grandes, que peneiram talentos desde que gatinham.

Era um rapaz comum, que vivia num mundo de estrelas. Vivia, porém, emprestado.

Sem tatuagens, nem brincos. Sem flashes ou parangonas. Sem amuos por ser, como o próprio considerou, um «underrated». Apesar do dom natural com a bola, da velocidade vertiginosa, da garra com que disputava cada lance.

Como pode alguém que era craque do Liverpool há meia década não ser visto como uma celebridade?

A sua mulher, Rute, era a namorada da escola. O seu grande hobby eram os videojogos. Era um homem de família, agarrado às origens. Inseparável do irmão André e dos pais, Joaquim e Isabel, gente de trabalho e com o coração no lugar certo. São esses valores que irão florescer nos seus três filhos, cujo carácter será moldado pelos exemplos do pai e do tio.

Diogo tinha raízes fortes. Talvez por isso, a fama não lhe tenha feito levantar os pés da terra.

Era trabalhador e talentoso, inteligente e vertical, como o seu jogo, características que o seu irmão também denotava em campo.

Tinha um profundo respeito pelas origens e um sorriso franco e honesto. Era esse sorriso rasgado no rosto que iluminava os reencontros sempre que ele voltava para as suas pessoas, para os lugares onde foi feliz.

Diogo riu-se com vontade uma vez que lhe perguntei se, já que a tinha financiado (com o dinheiro da sua transferência), achava bonita a bancada do Paços, quando lá voltou para a inauguração, num jogo em que foi capitão da Seleção de sub-21.

Em todo este acidente brutal, que roubou duas vidas, intrigava-me a preferência por aquele automóvel.

Quem o conhece diz que o Jota não era dessas extravagâncias. Que talvez o supercarro tenha sido alugado para proporcionar a experiência ao irmão André, por lhe fazer companhia naquela fatídica viagem. Terá sido uma forma de o surpreender, de lhe retribuir e agradecer a disponibilidade.

Diogo era grato aos que lhe eram próximos. Convidava-os para visitar Anfield para ir ver os seus jogos. E, no final, procurava-os na bancada, para um abraço ou para autografar a camisola.

Outras vezes, trazia camisolas de jogo para distribuir em Paços e Gondomar por amigos e funcionários.

Os seus vídeos com mensagens de parabéns para os filhos de adeptos, de conhecidos ou nem sequer isso, estavam à distância de uma solicitação.

Contaram-me por estes dias que, volta e meia, sem que lhe fosse pedido, Diogo mandava para o estádio do Paços umas caixas com chuteiras de marca. Ligava ao roupeiro do clube, uma amizade com raízes na adolescência, como tantas outras, e incumbia-o da missão de as fazer distribuir pelos rapazes da formação, com o critério de privilegiar aqueles cujo contexto familiar fosse mais difícil.

Que simbólico gesto este de quem em menino nunca se atreveu a pedir chuteiras caras aos pais.

Diferenciava-o esta sensibilidade de perceber o contexto.

Talvez por isso, num mundo de egos inflamados, ele soubesse apagar-se e trabalhar com afinco para ultrapassar obstáculos e voltar a ganhar uma oportunidade, competindo ao lado dos melhores.

Se o seu irmão André estava em afirmação, Diogo estava no auge.

Em poucos meses, foi pai pela terceira vez, foi campeão inglês, casou com a namorada de sempre, venceu a Liga das Nações pela Seleção.

Os títulos, porém, são só um adorno. Tudo o resto ele já havia conquistado.

Diogo deixou em Paços de Ferreira uma bancada nova, sob a qual bate o coração do futebol profissional.

Deixou em Gondomar uma academia, onde a cada dia centenas de jovens se inspiram no seu exemplo.

Deixará em Liverpool o imenso vazio do número 20, que será imortalizado no mítico estádio de Anfield.

É raro alguém com 28 anos deixar tamanho legado.

Num mundo cheio de ídolos de pés de barro, Diogo sabia viver na sombra, mesmo ciente de que trazia consigo o brilho das estrelas.

Como cantava Lennon: ser herói assim tem ainda mais valor.

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«A Vírgula» é um espaço de crónica da autoria do jornalista Sérgio Pires.