Estava quase a dar o segundo toque. A professora de História vinha apressada, claro. Livro de ponto numa mão, um monte de capas na outra. Ao canto falava-se do último episódios dos «Riscos», imagino. Ou «Baywatch». De repente, um estrondo e um livro de ponto a rastejar pelo chão, qual pedra de curling, sem varredores.
 
A professora tinha tropeçado no último degrau e caído. Eu, como é natural, não contive uma gargalhada. Problema? Mais ninguém se riu. No silêncio que se seguiu ao tombo ouviu-se apenas o meu riso, abafado no instante seguinte a ter percebido que estava só naquela luta.
 
Acho que corei, mas não tanto como a professora, que se levantou, limpou as calças, arranjou os óculos, colocou a cara mais séria que conseguiu, encarou-nos a todos e disse: «Se descubro quem riu, leva falta a vermelho no livro de ponto.» Ah, as faltas a vermelho… Verdadeiro ícone das ameaças letivas. O poder da tinta diferente na caneta.
 
Ora, eu continuava a achar que não tinha feito nada de mais, mas, pelo sim pelo não, nunca mais achei piada a nada nas aulas de História. Estava inocente, mas não queria chatices. E nem sou eu que o digo. É William Fry, que explicou que as quedas são «uma incongruência no decorrer da vida, por serem inesperadas, provocando riso.»
 
Inocente, no fundo.
 
Mas o certo é que eu também já me espatifei em público e sei que dói mais na alma do que no corpo. Acontece a todos, até se nos chamarmos João Vieira Pinto. Mas esse, vá, teve a sorte que eu, a professora de história e todos os que já passaram por semelhante embaraço nunca tiveram: estava Rui Costa ao seu lado a desviar atenções.
 
Era o jogo decisivo de apuramento para o Euro 96. Portugal estava com a seleção que tinha de vencer a Rep. Irlanda numa Luz alagada. Palco propício a quedas, pois claro. Mas uma ficou para sempre.
 
Ainda hoje quem viu recorda o golaço de Rui Costa, mas poucos são os que se lembram do trambolhão de João Vieira Pinto. A verdade é que não teria havido momento de génio sem momento de embaraço.
 
Uma assistência em queda. Um passe com a cara na lama. Um toque para o lado com a alma e o corpo vergados. A primeira com vergonha, o segundo pela lei da gravidade.
 
Antes que eu, ou outros como eu, pudessem achar graça ao tropeção de João Pinto, aparece Rui Costa. Pontapé fulminante, em chapéu, bem no centro do orgulho irlandês. Bola na trave e golo. Não teria sido tão bonito se não tivesse batido na trave, correto?

Humberto Coelho, na transmissão, frisou logo o ponto chave. Duas vezes. «Rui Costa aparece...bem equilibrado». Foi para chatear o João, não foi?
 
O que interessa é que foi golo. Um golaço. Que agradou a todos. Talvez não aos comunistas: inadmissível que o proletariado tenha de se vergar para a classe superior brilhar. O povo cai, dá-se ao vexame, para os holofotes serem para outros. A classe operária de cara na lama e o capitalismo de braços erguidos para a multidão.
 
João Vieira Pinto, esse, levantou-se de fininho e juntou-se à festa. Se calhar foi nessa noite que descobriu as vantagens de se atirar para o chão em determinadas alturas. Atenção, não sou eu que digo: é Otávio Machado.
 
Eu vi apenas um homem como eu ou como a professora de história. Um homem de virtudes e defeitos. Um homem que assistiu para um dos mais icónicos golos da história da seleção. Um homem de cara na lama.
 
A levantar-se rapidinho à espera que ninguém tivesse visto. Pois, mas eu vi, João Pinto. E não me esqueço.
 
 

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